Cultura, um direito de todos
Folha de S. Paulo


Toda a produção material ou imaterial do gênero humano pode ser chamada de cultura. É nesse sentido que arqueólogos, antropólogos e outros estudiosos caracterizam o modo de um grupo se enfeitar, coletar frutas, utilizar calendários e conceber deuses.
Num sentido mais estreito, podemos falar da cultura como sendo o patrimônio que a humanidade acumula a cada geração. É o caso da filosofia grega, da ética dos profetas hebreus, do direito romano, das catedrais medievais, das pinturas e esculturas de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, da música de Bach e Beethoven, do pensamento de Marx (querendo entender a sociedade), de Freud (buscando desvendar o interior das pessoas), de Einstein (tentando explicar o universo), do cinema de Eisenstein e Orson Welles e muito mais.
              
O traço mais marcante da distinção entre os homens e os demais animais é a nossa capacidade de produzir e transmitir cultura. Assim, é uma questão de crença no potencial humano defender o direito de todos terem contato com obras fundamentais da cultura, produções do gênio humano que justificam nossa presença neste planeta, ao qual, de resto, provocamos tantos estragos. Não acreditar no direito universal à cultura seria imaginar que apenas uma casta de eleitos pode estabelecer contato com esse patrimônio. O que, convenhamos, soa um bocado elitista, não é?
Claro que se pode (e deve) defender a diversidade cultural, o direito a diferentes culturas, desde que se tome cuidado com uma armadilha em que muitos caem. Uma coisa é o trabalho de resgate cultural de raízes (como o que faz, por exemplo, Antônio Nóbrega), outra é deslumbrar-se com produtos da indústria cultural como músicas concebidas e produzidas por marqueteiros e divulgadas a custa de jabaculês em certas rádios e tevês. Sociólogos importantes, como Octávio Ianni e José de Souza Martins estabeleceram com clareza essa distinção ao escreverem contra uma suposta defesa da “cultura popular”, que, na verdade, não é popular, nem cultura...
Num país em que cada pessoa compra, em média, menos do que um livro por ano, é importante o esforço no sentido de incrementar a leitura. O acesso a bons filmes talvez possa retardar o processo de infantilização de adultos (comédias idiotas, desenhos elementares, personagens sem conteúdo). Visitando bons museus (pessoal ou virtualmente) as pessoas estabelecem um contato mais estreito com importante parcela do patrimônio cultural da humanidade preservado nesses espaços.
              
A universidade brasileira está assentada no tripé docência/pesquisa/extensão, o que pressupõe profissionais comprometidos com a investigação séria, a docência responsável e o estabelecimento de uma relação generosa com a comunidade, por meio de cursos de extensão universitária. Não se trata, é claro de o pesquisador transformar-se num simples divulgador, mas de não se omitir dessa importante função. Se sem pesquisa a produção intelectual fica rasa, sem diálogo com a sociedade, fica estéril. As melhores universidades do mundo publicam obras de divulgação; os museus e galerias de arte divulgam seu acervo para crianças, estrangeiros e idosos; é ponto pacífico que divulgação cultural não pode ser confundida com interesse mercadológico ou populismo.
É evidente que há excelentes intelectuais que, por características de personalidade, especificidade do campo de trabalho, ou decisão pessoal, atuam apenas dentro dos muros da academia. Esses não criticam aqueles que decidiram dialogar com a sociedade, tentando tornar conhecimentos técnicos e reflexões profundas acessíveis aos não especialistas. Sabem que, em tempo de muita informação desconexa, a ação de intelectuais desse tipo é fundamental.
Os tiros são sempre disparados por escritores limitados, autores sem obra, pensadores sem tese, profissionais desacreditados, que só garantem o seu emprego por conta da estabilidade e do corporativismo, quando não por ligações espúrias com os detentores do poder. Sem brilho próprio, nem ao menos conseguem refletir o brilho alheio. Inseguros, pois têm consciência de sua mediocridade, sentem-se permanentemente ameaçados. Mesmo assim, agem como o aluno irresponsável e preguiçoso: “não li e não gostei”. Não admitem que profissionais liberais, artistas, pequenos empresários e até donas de casa possam ter inquietações intelectuais, razão pela qual riem dos esforços dessas pessoas em saciar sua vontade de conhecer mais. Por extensão, tentam desqualificar o trabalho daqueles que lutam para tornar a cultura acessível a mais gente, quando todos sabemos dos riscos de escrever e editar neste país.
            Os adversários, minha gente, são outros, não os que falam a favor do livro, do teatro, do cinema e da música de qualidade, de bons museus, da civilidade, e de outros aspectos da cultura humana.