Ao patrimônio cultural, o devido valor
O Estado de S. Paulo


Ao contrário do que aprendi no colégio, não é a capacidade de se organizar social ou economicamente que diferencia o homem dos demais animais. Pesquisas esclarecem que não apenas abelhas e formigas, mas também predadores e primatas, relacionam-se em complexos grupos, em que estruturas de poder e códigos sociais começam a ser desvendados. A maior diferença entre os demais animais e o ser humano está na capacidade que temos de produzir, acumular e transmitir cultura. E esse conjunto de dados, objetos, símbolos, crenças, manifestações que denominamos cultura vem compondo o patrimônio cultural da humanidade.
Pensando nessa direção, podemos fazer uma longa lista de elementos de nosso patrimônio cultural: são as pirâmides egípcias e o monoteísmo dos hebreus; a filosofia grega e o direito romano; igrejas, mesquitas, templos budistas; a obra de Mozart, Tom Jobim e Chico Buarque; a cozinha francesa e a baiana; Paris e Ouro Preto, Nova York e São Paulo; nossas línguas (cada uma que morre é uma perda patrimonial); a Monalisa de Da Vinci e as bandeirolas de Volpi; o cinema de Chaplin e Bergman, e por aí afora. Compensa um pouco pensar que não somos apenas competitivos e agressivos, como a imprensa mostra, mas que cada um de nós é ou pode ser o depositário de todo o patrimônio cultural da humanidade.
Isto tem muito a ver com o turismo. Genericamente, costuma-se dizer que todo deslocamento do turista implica numa apropriação cultural, uma vez que faz com que ele entre em contato com novos espaços e expressões do gênio humano. Talvez se deva discutir isso com mais vagar: muitas vezes o turista organiza uma viagem, faz as malas e se dá ao incômodo de se deslocar apenas para, em última instância, não mudar nada. A certeza de suas verdades e/ou o medo de ser influenciado por outras visões de mundo, leva-o a viajar protegido por um grupo, a não interagir com companheiros de viagem e, muito menos, com os “nativos”. Quando em outro continente espia os monumentos e as ruas por trás de vidros do ônibus, sacia-se com as piadas pasteurizadas do guia e, em vez de expandir seus horizontes, reforça estereótipos idiotas (francês é sem educação, argentino é arrogante, italiano é garanhão, baiano é folgado, etc.), pois não se dispõe a testá-los numa convivência enriquecedora. Tem gente que ainda acha que apropriação cultural é roubar cinzeiros ou saleiros de restaurante, ou gravar seu nome em monumentos arqueológicos.
Por outro lado, aumenta o número de pessoas que, de fato, quer conhecer o lugar para onde vai, seja uma metrópole agitada ou uma praia tranqüila. Pessoas que podem até freqüentar paraísos artificiais como Aruba ou Cancún, mas preferem espaços de lazer que tenham personalidade, cultura local. Não que Aruba e Cancún não sejam espaços culturais – mas estão para o lazer como o McDonald’s está para a comida: saciam a fome de forma sempre igual. E isso nos leva a uma última reflexão: será que, para o Brasil, vale a pena investir apenas na criação de resorts sofisticados, destinados ao turismo internacional pasteurizado? Noutras palavras, será que é tão vantajoso criar aqui clones de Cancún e Aruba, mais distantes para europeus e americanos do que as originais? Não seria importante aproveitarmos melhor o nosso rico patrimônio cultural, embalá-lo sabiamente como produto de mercado, sem subtrair sua essência e apresentá-lo ao mundo? Além de elevar nossa auto-estima, mostraríamos que não somos só o país do carnaval, mas de festas espalhadas pelo país, de importantes edificações que se deterioram a olhos vistos, de cidades plenas de manifestações culturais, de culinária rica e variada, de um povo simpático, embora ainda monoglota. Dentro de muito pouco tempo o turismo será o maior negócio lícito do mundo. Seria um erro perder o bonde. Ou entrar no bonde errado.