Uma história de família. E de livros
Correio Braziliense


Quando meu pai chegou aos 24 anos, foi chamado para uma conversa particular com seus pais, dona Paulina e seu Maurício, e comunicado, laconicamente, que já era chegada a hora de ele pensar seriamente em constituir família. Antes que tivesse tempo de esboçar qualquer reação, foi avisado também que as terras em que os Pinskys viviam eram insuficientes para alimentar mais bocas e que lhe cabia sair para o mundo para batalhar o seu sustento. Homem forte e musculoso, acostumado ao trabalho da terra, estranhamente moreno para alguém nascido nas cercanias da Rússia Ocidental, bonitão a ponto de ser assediado pelas garotas da colônia de Baronesa Clara, perto de Quatro Irmãos, no Rio Grande do Sul, Abrão sentiu que sua vida sofreria nova guinada.
A primeira ocorrera quando abandonara, com seus pais e cinco irmãos, a casa onde nascera e crescera na cidadezinha de Prujane, não muito longe da cidade de Pinsk, então pertencendo à Polônia. Emigraram não porque vivessem propriamente mal. Meu avô tinha alguma terra, onde plantava cereais e havia comprado um moinho onde beneficiava os grãos de seus vizinhos, que lhe pagavam pelo serviço em espécie. Somando com o seu, era trigo suficiente para alimentar bem os seis filhos e dois ou três sobrinhos, que os próprios pais não conseguiam sustentar. A mesa não era variada nem luxuosa, mas muito farta, à base de pão, massas e batatas, arenques, laticínios e os vegetais da estação. Carne era artigo de luxo, e frango, sob a forma de canja, remédio para os adoentados. Ovos à vontade complementavam as refeições. Meu pai se lembrava com muito carinho de alguns almoços em família, a panela fumegante sendo atacada por garfos afoitos, que lambuzavam as batatas lá obtidas com muita manteiga batida pelas mulheres e acrescentavam um naco de arenque para completar a refeição.
A vida não era, portanto, ruim. Todo mundo estudava, mesmo as meninas, algo não tão comum nos países da Europa Central por 1920. O que não dava mesmo para segurar era a instabilidade política numa região que fora do império czarista, da Lituânia, e naquela época pertencia à Polônia. A Revolução Russa de 1917 traumatizara ainda mais aquela área onde habitavam judeus vivendo havia já sete séculos e onde desenvolveram a cultura da língua iídishe, com seus valores, padrões de comportamento e até personagens próprios, diferentes das de outras comunidades judaicas em qualquer lugar do mundo, em qualquer época. Mas, como dizia, era uma época de mudanças em que a instabilidade política se transformara em insegurança psicológica, o medo aconselhava a busca de outras opções e o Brasil era apresentado como parte da América, região em que, como todos sabiam, o dinheiro dava em árvores e as ruas eram pavimentadas com barras de ouro justapostas. Assim, Paulina e Maurício venderam tudo o que tinham, terras, casa e moinho, galinheiro e horta, e empreenderam a longa viagem para uma terra mais pacífica e tranqüila, o Brasil.
No começo, a vida foi muito dura. As terras tinham que ser roubadas à floresta, palmo a palmo, uma vegetação fechada como nunca haviam visto na Europa. Depois de um dia puxado, com a ajuda de todos, o banho, a refeição e hora de deitar. Apesar de a casa ser pequena, cada um carregava a sua vela acesa e seu livro para a cama: a leitura era sagrada. Os grossos volumes, romances e coletâneas de contos, eram lidos por todos e discutidos à mesa. Quando o estoque de livros trazidos da Europa se esgotava, meu avô ia até os vizinhos intercambiar volumes. De volta à casa, era aguardado pelos vorazes leitores, que namoravam com reverência as obras recém-chegadas e esperavam a sua vez para deles se utilizar. Imagino a cena como a de um caçador trazendo carne para os filhotes famintos. E não era fome – só que de leitura – o que tinham aqueles meninos e meninas?
Assim cresceu Abrão, entre enxada, foice e livros, amendoim, alfafa, cereais e livros, passeios pela mata, banhos no riacho e livros. Nos fins de semana, enfeitava o melhor cavalo (o único, talvez), colocava uma bela “fatiota”, o lenço entre o pescoço e a camisa, para não sujar a gola com a terra da estrada, e marchava, garboso, até o local do baile. Lá aparecia, vez ou outra, uma garota, ainda muito nova, mas de uma beleza diferente que deixava o quase caboclo fascinado. Ele se amarrava naqueles cabelos negros e quase lisos, naqueles olhos azuis da cor do oceano, naquela pele clarinha que parecia neve ao lado do seu tom inexplicavelmente mourisco, mas, principalmente, naquele olhar altaneiro e resoluto, de quem sabe o que quer e quando quer. Namorar, não! É muito cedo para mim. Você vai arranjar outra? Isso é problema seu, estou me lixando, Abrão dançava com uma, ficava de flerte com outra. Sua compleição robusta e enxuta, seus braços fortes e abundantes cabelos encaracolados, seu raro senso de humor tornavam-no um dos preferidos das mulheres, algumas das quais bem bonitas, mas quem tirava Léa do coração de Abrão?
Assim, após ser chamado pelos pais, como contei no início desta conversa, Abrão decidiu. Iria, mas levaria Léa consigo.
Para não deixar o possível leitor em suspense desnecessário, precipito os acontecimentos. Léa aceitou Abrão como namorado, ele foi para a cidade com o objetivo de “se arranjar” um pouco e depois voltar para se casar com ela, acabou se instalando em Sorocaba, onde, após vender quadros de santos e outros objetos que tais nos bairros operários da cidade, conseguiu montar uma pequena loja, na qual, me recordo, havia uma pequena biblioteca em iídishe e outra em português.
Desde a mais tenra idade, lembro-me de meus pais lerem para nós, minha irmã e eu, pequenas histórias em iídishe de Sholem Aleichem, Bashevis Singer, Davi Pinski e outros escritores notáveis. Só quando aprendi a ler, com cinco anos, é que descobri que português também era língua literária. Nossa casa tinha luz de leitura em todos os quartos (mais filhos viriam depois, mudamos de casa), eu nunca soube o que era dormir sem antes ler. Nem agora. O mesmo acontece com meus filhos. E com minha mulher.
O prazer obtido na leitura só pode ser compartilhado com outros que têm o mesmo hábito. É por isso que queremos tanto transformar as pessoas amadas em leitores.