Os amigos da leitura
Correio Braziliense


Há dois anos, escrevi um artigo neste mesmo jornal intitulado "O livro não morreu. Viva o livro!". Na ocasião, comemorava a força das novas (e não tão novas) feiras de livros espalhadas pelo país. Lembrava, também, as previsões apocalípticas de quatro anos antes, quando do advento da internet e dos e-books. No artigo, procurava mostrar o quanto os ruidosos arautos do “fim do livro” estavam equivocados. Realmente, pelo menos por enquanto, escapamos da "ameaça" da substituição dos livros de papel por outras mídias. Por muito tempo ainda, continuaremos a desfrutar o prazer de folhear um livro, acariciar sua capa, sentir o cheiro das páginas, admirar seu projeto gráfico, namorá-lo com um misto de requinte e volúpia. Contudo, outra ameaça continua fazendo com que o mercado editorial caminhe de lado, apesar do aparente otimismo em relação ao futuro.
Dados recentes da Câmara Brasileira do Livro revelam que, no primeiro semestre de 2003, em relação ao mesmo período do ano anterior, houve uma queda de 7% nas vendas de livros no Brasil, embora o número de lançamentos no país tenha se mantido estável. Com isso, derrubamos ainda mais o nosso já vexatório índice nacional de leitura, inferior a dois livros por habitante/ano. Quando se leva em conta que tal índice é, em boa parte, turbinado pelas compras governamentais feitas diretamente aos editores e pela venda de livros didáticos, religiosos e técnicos, temos diante de nós o tamanho exato do problema. Deparamo-nos com a lógica perversa do célebre “efeito tostines”: não lemos porque somos um país subdesenvolvido e continuamos a ser um país subdesenvolvido porque não lemos.
              
Apesar da propalada melhoria em nossos índices de educação, ainda somos, de fato, um país sem leitores. Obras fundamentais, que nos anos 70 e 80 alcançavam tiragens de 5.000 exemplares e, nos anos 90, de 3.000, agora, quando são publicadas, não ganham uma edição superior a míseros mil ou 2.000 exemplares. Um dos principais fatores que levam ao não-crescimento do mercado editorial é, sem dúvida, a estagnação econômica. Em um país com índices sociais ainda tão críticos, o livro é considerado um produto supérfluo quando comparado com a dificuldade de acesso da população a itens de primeira necessidade, como comer, vestir e morar com o mínimo de dignidade.
A despeito disso, a cada ano nascem dezenas de editoras no país. Chegamos a uma situação, no mínimo, paradoxal: temos mais editoras do que livrarias no Brasil. Penso que, mesmo dentro de cenário tão turbulento, o surgimento de novas editoras denota um surpreendente otimismo por parte do setor. Essa mesma profissão de fé no livro evidencia-se com o extraordinário sucesso de venda dos espaços para a próxima Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que ocorre de 15 a 25 deste mês na capital paulista.
Isso é uma prova de que, por mais incrível que possa parecer, existem pessoas que acreditam na viabilidade e na importância do mercado editorial e, do mesmo modo, estão dispostas a arregaçar as mangas para fazer com que ele saia da incômoda posição que hoje se encontra. Apenas colocar a culpa no governo de plantão ou na eterna crise econômica do país não ajuda muito. É evidente que o governo pode – e deve – fazer a sua parte, criando condições objetivas para tirar nossa economia do atoleiro ou, de forma mais direta, organizando programas sérios e criteriosos de compras de livros de qualidade para as bibliotecas públicas.   
Mas tudo isso não basta. Em conversas com colegas e em artigos de jornal, tenho insistido que é preciso envolver e comprometer setores da sociedade diretamente interessados na difusão da leitura no país. Talvez, juntando os esforços de entidades como a Câmara Brasileira do Livro e a Associação Nacional de Jornais ao de secretarias de cultura municipais e estaduais, pudéssemos até mesmo criar uma certificação para os “amigos da leitura”.
A idéia é simples e, penso, perfeitamente exeqüível. Os concessionários de linhas intermunicipais de ônibus, por exemplo, em vez de instalarem aparelhos de televisão, poderiam ser estimulados a manter lâmpadas adequadas de leitura e uma pequena biblioteca com obras adequadas ao tamanho do percurso. A mesma idéia poderia ser perfeitamente adotada nos trens do metrô. Já os hotéis seriam estimulados a instalar luz de leitura nos quartos, além de manter uma pequena biblioteca à disposição dos hóspedes. Aeroportos, consultórios e clínicas médicas poderiam ser convidados a oferecer cantos silenciosos e bem iluminados, que tornassem longas esperas menos enfadonhas e sofridas. Caberia aos jornais e revistas dar visibilidade às empresas certificadas com tal selo, valorizando aqueles que, em última análise, os estão valorizando.
Oferecer certificados de “amigos da leitura” seria uma medida simpática e, mais do que uma simples jogada de marketing, constituiria uma ação verdadeiramente educativa. O trabalho coletivo de educadores, entidades, editores, livreiros, empresários e governos é o único caminho possível para que a leitura seja devidamente democratizada em nosso país. Nesse cenário ideal, as bienais e feiras do livro continuariam a desempenhar seu papel fundamental de centro aglutinador e formador de leitores. Mas a verdadeira festa do livro ocorreria todos os dias, no cotidiano de cada um de nós, brasileiros.