O direito à Cultura
Correio Braziliense


É razoável definir cultura como sendo toda a produção material ou imaterial do gênero humano. Nesse sentido é que arqueólogos, antropólogos e outros estudiosos caracterizam a especificidade de uma tribo construir uma casa, plantar uma raiz, pintar o corpo ou elaborar suas lendas. Em decorrência dessa visão pode-se afirmar que conhecer a cultura de um grupo implica em dar conta das coisas que consideramos belas e boas, como também daquelas que não consideramos.
Falar gritando, surrar a esposa, construir cidades feias, desobedecer leis, buscar vantagens indevidas em cargos públicos e sonegar impostos na iniciativa privada, dirigir alcoolizado sem sentir culpa, desrespeitar faixas de pedestres, ser arrogante (quando poderoso) e dissimulado (quando buscando o poder), são características culturais freqüentemente atribuídas aos brasileiros, por exemplo.
Num sentido mais estreito, podemos falar da cultura como sendo a patrimônio cultural da humanidade, que temos o direito de usufruir. Aí falamos, por exemplo, da filosofia grega, da ética dos profetas hebreus, do direito romano, das catedrais medievais, das pinturas e esculturas de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, da música de Bach e Beethoven, do pensamento de Marx (querendo entender a sociedade), de Freud (buscando entender o interior das pessoas), de Einstein (tentando explicar o universo), do cinema de Charlie Chaplin, e por aí afora.
Embora tenha poucas esperanças de que venha a acontecer, defendo o direito de todos terem contato com obras fundamentais da cultura humana, produções do gênio humano que justificam nossa presença neste planeta. Mais ainda, assusta-me a idéia apresentada por uma professora, em recente programa de TV educativa, dizendo que o ensino deveria restringir-se à leitura de “textos” ligados a questões diretamente vivenciadas pelos alunos. Ora, essa corrente de educação executiva e funcional, confundida freqüentemente com construtivismo – que não é nada disso, professora – tenta explicar um mundo que não precisa da escola. Por outro lado, corre-se o risco de ensinar que a história da humanidade se reduz a falcatruas públicas e privadas, a assaltos, tráficos, assassinatos e outros menos votados.
Não se trata, é claro, de viver num mundo que não tenha contato com o que está aqui, mas trata-se de desenvolver padrões éticos e estéticos que permitam aos jovens mesurar melhor o significado de atitudes anti-sociais, que a geração que está no poder pratica descarada e despudoradamente. Mergulhar na cultura da humanidade nos qualifica melhor para dar conta do mundo em que vivemos hoje. Daí falarmos de desenvolver padrões éticos e estéticos.
Os éticos são óbvios, mas padrões estéticos também, por que não? Ouvindo música de qualidade as pessoas adquirem condições de avaliar se o que lhes é impingido pelas rádios movidas a jabaculê é, de fato, “música que o povo gosta” ou ruído selecionado pelos marqueteiros gravadoras. Lendo livros bons, elas poderão descobrir o enorme prazer que a leitura proporciona, assim como a autonomia que ela nos dá (lemos onde e quando queremos, no ritmo que desejamos, não temos que ler propaganda nos intervalos, os heróis têm a aparência que nossa imaginação criadora determina). Vendo bons filmes, teremos a ocasião de perceber o processo de infantilização de adultos (comédias idiotas, desenhos elementares, personagens sem conteúdo) e de assassinato da infância (violência e sexo à vontade, ou melhor, sexo com violência, como se um precisasse estar vinculado ao outro) aos quais os grandes estúdios estão nos submetendo.
            Cultura, enfim, pode até deixar a alma mais sensível e complexa, mas ser humano é assumir a complexidade inerente à nossa condição. Além do mais, chorar com o violoncelo plangente de um adágio beethoveniano, ou com a relação entre Amós Oz e sua mãe no livro mais assumidamente edipiano escrito por um grande romancista, não é a mesma coisa do que derramar lágrimas em passagens improváveis de sofrimentos de heroínas protagonizadas por atrizes de quinta categoria.
            Todos sabem que até o mais talentoso jogador de futebol tem que treinar muito. Talento é sorte, empenho é virtude. Assim também com a cultura. Gostar e não gostar tem a ver também com educação. Defendo, aqui, o direito de todos à Cultura. Para os que a buscam com vontade, no meio do caminho há um arco íris que nunca desaparece...