A história segundo Alcebíades
Correio Braziliense


          O professor de Química da escola de comércio onde fui dar aulas de História, enquanto cursava o terceiro ano de faculdade, não se conformava com o fato de eu não saber onde Átila, o rei dos hunos, estava enterrado. Para ele, o local era o Sahara e sua lógica, perfeita: se o bárbaro era o “flagelo de Deus”, se por onde ele passava nenhuma vegetação mais nascia, só o fato de o norte da África ter abrigado seus restos justificava uma área tão vasta ter se transformado em deserto. Alcebíades (este era o nome do professor de Química, creiam ou não) deixava claro ter sérias dúvidas a respeito da minha capacidade de docente, uma vez que não apenas eu não confirmava suas suposições, como ainda me permitia duvidar da relevância histórica do assunto.
          Mas Alcebíades ficava furioso mesmo quando eu lhe dizia que toda História era História contemporânea. Ele achava, alicerçado em robustas bases tomistas, que História antiga não podia ser História contemporânea, uma vez que, se fosse História contemporânea não seria chamada de Historia antiga (como diria Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, que Alcebíades não conhecia) e sim de Historia contemporânea. E que, nem assim seria História contemporânea, pois essa fala de viagens siderais, crença em realidade virtual e liberdade sexual, enquanto que a História antiga refere-se a passeios pelo Nilo, em crença no deus sol e em sacerdotizas virgens.
          Alcebíades negava o olhar do observador e dizia que uma coisa é ou não é, foi ou não foi. “Feldspato – na verdade, pronunciava “ferdespato”, ituano legitimo que era - não é mica preta, nem quartzo, mesmo que juntando os três obtenha-se o granito”, pontificava com grande sabedoria, “e que isso valha como uma metáfora da História”. (Para vocês verem que a metáfora não apareceu em primeiro de janeiro de 2003, como muitos pensam).
          Tudo isso me ocorre por conta de dois livros que estão para sair e que tive o privilegio de ler, ainda em provas. O primeiro, O mundo muçulmano, escrito por um verdadeiro expert no assunto, o holandês radicado no Brasil Peter Demant, estuda, em profundidade, a civilização que saiu do deserto, expandiu-se, sofisticou-se, expandiu-se mais ainda, não acompanhou os avanços do mundo moderno e tenta enfrentar o ocidente com homens-bomba e outras técnicas suicidas. O que aconteceu com a civilização que já foi o que havia de mais progressista no mundo, tomando emprestado técnicas agrícolas, métodos administrativos, conhecimentos científicos e tolerância religiosa de uns, incorporando ao seu patrimônio cultural e passando generosamente aos outros? O que aconteceu com esses formidáveis gestores que compatibilizaram, no mundo mediterrâneo, cristãos, judeus e muçulmanos? Há saída para um pretenso e anunciado choque entre oriente e ocidente, ou o desastre está escrito nas estrelas? Demant, admirador confesso do mundo muçulmano, teme que a negação da história seja a responsável por confinar uma admirável civilização no limitado espaço que fanáticos e suicidas reservaram para ela. Pensa que, talvez, a única boa solução para o conflito seja o crescimento, dentro do islã, dos grupos contrários a uma visão fundamentalista da religião, ou seja, uma historicização da filosofia, prática e estrutura de poder dos seguidores de Alá.
          Um olhar de hoje, uma superação do anacronismo. Com o perdão de Alcebíades.
          Para quem gosta do mundo muçulmano (muçulmano não é sinônimo de árabe; as quatro maiores nações muçulmanas, por sinal, não são árabes), ou apenas quer entender o assunto, aviso que o livro estará nas livrarias a partir de 9 de fevereiro.
          Outro trabalho fascinante é a nova biografia de Castello Branco que vem aí. Graças a uma documentação inédita que teve a oportunidade de consultar, a uma leitura atenta às obras já publicadas e a uma recriação escrupulosa de episódios, o jornalista cearense, radicado em São Paulo, Lira Neto, está prestes a lançar o mais sério e conseqüente trabalho de recriação do militar que inaugurou o ciclo dos presidentes fardados, a partir de 1964, no Brasil. Não se trata de obra historiográfica, e nem o autor se apresenta como historiador, mas, a partir do lançamento do livro, previsto para fevereiro, ninguém vai poder falar do período sem se referir a Castello, a marcha para a ditadura, nome da obra no prelo. De quebra, Lira Neto tem um texto fluente e econômico, que faz as quatrocentas páginas da obra, ricamente ilustrada, terminarem num piscar de olhos. A única concessão que Lira faz a Alcebíades é nos informar que a mulher de Castello Branco gostava de flores vermelhas...