Identidade nacional e futebol
Folha de S. Paulo


Dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo é aquela festa: bandeiras nervosamente agitadas, famílias e vizinhos se reunindo para ver a partida na televisão, bancos, fábricas e hospitais dando meio expediente, escalação da seleção na boca de todos.
Minha cunhada, sem querer, definiu a razão de tanto agito: “Se não vejo pelo menos um pedaço do jogo, me sinto por fora, eu que nem gosto de futebol”.
Que compulsão será essa que leva notícias políticas, policiais e até (ufa) econômicas a perder espaço nos jornais e nas TVs, que faz com que o porteiro do edifício em que moramos, normalmente sem nome e sem rosto, seja notado em sua camiseta “canarinho”, que homogeneíza, por alguns momentos, o tecido social tão desigual e que cria uma estranha sensação de que fazemos parte de algo mais amplo que a família, o escritório, a turma da rua, o time por que torcemos, os coirmãos maçons ou rotários ou o partido em que militamos?
Para alguns, tudo não passa de uma criação da mídia, desejosa de faturar. Para outros, não é senão agitação promovida pelo governo, com o objetivo de desviar o povo dos verdadeiros problemas do país e criar uma atmosfera de falsa euforia cívica. Há ainda os que acham tudo uma loucura, um despropósito, uma alienação. Será?
Arriscaria dizer que alienado é quem age como se nada estivesse acontecendo com o país.
Não é só a questão de o futebol ser o esporte nacional: é também o fato de ele ser o esporte mais importante do mundo, o mais difundido internacionalmente, o mais praticado, o mais assistido. E, nesse esporte, somos bons. Talvez os melhores. E provamos isso em campo de batalha, ou melhor, esportivo, conseguindo em cinco ocasiões, na Suécia, no Chile, no México, nos Estados Unidos e no Japão (um pouquinho na Coréia), colocar mais bolas nas redes de todos os adversários do que eles nas nossas e ainda maravilhar centenas de milhares de espectadores e bilhões de telespectadores com jogadores maravilhosos.
Nossa auto-estima, que não anda lá essas coisas, fica lisonjeada em saber que nós, importadores de tudo, de tecnologia a teorias, de lanchonetes a bebidas, de padrões de comportamento a gostos musicais, exportamos bom futebol. Gostamos de saber das centenas (ou até milhares) de jogadores brasileiros atuando em clubes europeus e asiáticos, de técnicos brasileiros que dirigem seleções de outros países e até de brasileiros natos que, naturalizados, estão disputando jogos por outras seleções.
É claro que vitórias esportivas estimulam, momentaneamente, o orgulho nacional: torcemos pelo Guga, pelas meninas do basquete, pelos garotões do vôlei, por nossos maratonistas, nadadores e lutadores. Mas com o futebol é diferente. É que nesse esporte, para cuja prática basta apenas uma bola e um gol improvisado, reside algo que temos em comum apenas e com todos os nossos conterrâneos.
Buscamos durante a Copa a identidade nacional que nunca foi muito bem forjada neste país de transições sem mudanças, de independência sem povo, de Estado sem sociedade civil. Buscamos essa identidade que, antes de amadurecer, já nos foge pelos dedos da globalização açodada, pelo inchaço das cidades sem personalidade, pelas feiras que substituíram o artesanato pelo made in China.
Se alguém ainda insistir que falta ao Brasil uma boa guerra para que a identidade nacional possa de fato se afirmar, devo confessar que ainda prefiro o atual combate no gramado fofo, mesmo que o técnico seja sempre burro e que os jogadores que preferimos fiquem na reserva, à margem do campo.