Brasil, um país sem lei?
Correio Braziliense


Dizem que no Brasil há leis que “pegam” e leis que “não pegam”. Recentemente descobri que há também uma outra categoria, a das “não-leis que pegam”. Por exemplo, a “não-lei” da tortura: “todo indivíduo detido, a critério dos policiais, poderá ser submetido a tortura para reconhecer o crime, informar nome e endereço dos cúmplices, ou simplesmente dividir os ganhos do crime com os torturadores, sejam eles em dinheiro ou em espécie”. Alguém duvida da existência desta “não-lei”? Na área criminal, existe pelo menos mais uma muito conhecida e praticada, embora, que eu saiba, não conste do Código Penal: ela “legisla” sobre violências sexuais a que estarão sujeitos estupradores; pois todos sabem que a sodomização de acusados é pena corrente aplicada em nossos cárceres.
Há também “não-leis” em vigência na área econômica, como a da taxação das grandes fortunas. Com medo de que dinheiro graúdo escorregue para fora do Brasil, nossos governantes e legisladores temem criar uma lei que taxe os possuidores de muitos bens, mas, com o famoso “jeitinho brasileiro” encontraram formas de taxar o que imaginam serem “grandes fortunas”. As receitas são muitas, mas destacaria duas, uma que taxa bens, outra que taxa renda. Ora, como o país não tem inflação há muitos anos (!) as alíquotas de desconto de imposto de renda na fonte, ou no acerto anual, não são reajustadas ou o são de forma a não acompanhar a inflação real (pelo menos aquela que o governo aceita existir, como na conta de luz, de telefone, de água, de pedágio). Assim, se o assalariado teve a felicidade de se manter empregado (coisa rara) há uma década, e se teve o seu salário reajustado por qualquer índice inflacionário (coisa raríssima), ele é considerado um afortunado, razão pela qual pagará um imposto de renda real muito, mas muito mais alto do que pagava antes, pois vai se considerar apenas o valor nominal. Se, além disso, o afortunado resolveu vender hoje o apartamento que comprou por 50 mil reais há dez anos (e pelo qual conseguiu hoje 150 mil reais, o que não cobre a inflação do período), terá de pagar 15 mil reais de imposto de renda pelo lucro (sic) obtido. Essa não-lei estipula, portanto, que “o afortunado que tiver a ousadia de permanecer no emprego por muito tempo, tiver seu salário reajustado e conseguir trocar de imóvel após dez anos de muito trabalho será penalizado com impostos arbitrários que o estimulem a entrar na legião dos desempregados e desestimulados”. Bela “não-lei” para um país que quer crescer.
“Não-leis” urbanas? Há inúmeras. Uma delas: “quem não quiser ser assaltado deve providenciar sua própria segurança”; “quem não quiser ser atropelado por veículos não deve nunca atravessar a rua”; “o indivíduo que insistir em caminhar pelas calçadas de cidades grandes estará sujeito a tombos, torções e fraturas sobre os quais as prefeituras alertam não terem nenhuma responsabilidade”; “leis de silêncio vigorarão das 4h às 4h01 da madrugada, exceção feita aos carros que vendem pamonha de Piracicaba, gás, produtos de limpeza, morangos de Jundiaí, melancia do Cerrado, vasos do Vale do Jequitinhonha, artesanato de Tracunhaem, além de veículos sonoros apregoando as virtudes das lojas de varejo”. Em tempo: “bares e restaurantes não têm hora de abrir e de fechar, freqüentadores alcoolizados podem fazer a balburdia que quiserem ao procurar seus carros com os manobristas ilegais (já que é “não-lei”, pode), moradores não devem procurar polícia e órgãos da prefeitura, pois estas têm coisas mais importantes a fazer do que se preocupar com o cidadão”.
               E no trânsito, então, as “não-leis” já são tantas que as autoridades do setor estão procurando um Hamurabi moderno para organizá-las e publicá-las (dizem até que já existem algumas “não-editoras” dispostas a publicar a “consolidação da não legislação do trânsito”. Comecemos pela orientação geral dada pelas autoridades de trânsito aos seus oficiais: “a função dos guardas de trânsito é multar, aumentar a arrecadação municipal, seja por meio de aparelhos eletrônicos sofisticados, seja pessoalmente, não devendo os agentes perder seu tempo orientando o trânsito, socorrendo acidentados, ajudando pessoas a atravessar a rua, ou se ocupando com atividades extra-serviço; esta orientação não se aplica, é claro, a amigos, colaboradores e autoridades constituídas”. Algumas “não-leis” são exclusivas das auto-estradas de três pistas. Para estas foi promulgada uma que reza que “mesmo que se ande a 60km por hora numa estrada cuja velocidade máxima é 120km/h não se deve utilizar a pista da direita; a do meio é mais tranqüila e segura, devendo os apressados ultrapassar do jeito que puderem, pela direita e pela esquerda”. Outra interessante é “se seu carro tem mais de dez anos, evite licenciá-lo. Sua chance de ser pego é mínima e a economia é enorme”. Uma antiga, mas sempre útil: “quem não tem carro é um perdedor e não merece viver: invada a faixa de pedestre, faça roncar o seu possante, ameace os fracassados com o rugir do seu sucesso”.
               E antes que eu me esqueça, temos as “não-leis” relativas ao direito autoral. A primeira ensina que “a pirataria é livre; por mais que cantores e autores dediquem anos de trabalho e não sejam remunerados, por mais que editores e gravadoras tenham prejuízos, cópias piratas de cds e livros existem para os espertos fazerem economia à custa dos otários. A ‘rapidez’ e ‘baixo custo’ do nosso sistema judicial garante a impunidade”. Dessa derivam várias outras como aquela que “não-legisla” sobre reprografia estimulada pela reitoria de várias universidades ou por diretores de escolas de ensino médio, e por aí afora.
E depois dizem que a violência faz este parecer um país sem lei.
Que exagero!