Analfabetismo diplomado
Correio Braziliense


Uma amiga historiadora decidiu fazer um curso de primeiros socorros no Incor, em São Paulo. Como convivesse com pessoas mais velhas, achava que poderia ser útil em situações emergenciais, antes que o socorro médico chegasse. Após longa peripécia, pagou a taxa de inscrição e esperou ser chamada, o que demorou alguns meses. Por uma falha da burocracia do hospital, de resto tido e havido como modelar, acabou por agregar-se a um grupo de alunos da área médica (estudantes de medicina, enfermeiros e auxiliares de enfermagem, principalmente). No final do curso, compacto (um dia só), eficiente e, segundo ela “muito puxado”, foram realizadas provas em que ela tirou uma das melhores notas do grupo. Espantei-me com sua performance e busquei explicações que justificassem o fato de uma pessoa tão avessa à área médica poder superar quase todos os colegas profissionais de saúde e tirar um 8,8, pouco abaixo da maior nota do grupo, um 9,1. A não ser que se tratasse de uma vocação secreta irrefreável, parecia impossível que uma pessoa que, às 7h da manhã de um domingo, não conhecia nada do assunto poder, no final da tarde do mesmo dia, ser melhor que os outros em procedimentos tão distantes do ofício do historiador como respiração boca-a-boca, massagem cardíaca e por aí afora.
Abandonada a hipótese absurda da genialidade reprimida, a única outra que resta é que ela tinha a enorme vantagem de entender o que era formulado nas provas, enquanto que, para muitos dos colegas, as palavras impressas com as perguntas pareciam grego... Lembrei-me imediatamente de alguns programas de perguntas e respostas tipo Show do Milhão e de como eles me deixavam desanimado: as pessoas não só não tinham um conjunto de referências culturais mínimo, como simplesmente não entendiam o que lhes era perguntado. Quando o apresentador traduzia a pergunta, ou dava concretude ao conceito, várias questões eram respondidas satisfatoriamente. Em resumo, as pessoas não entendem o que lêem. Assim, não há como gostar de ler.
Fico pensando em como somos um país que adora aparências. Gostamos de pensar, ou fingimos pensar que somos todos iguais diante da lei, quando basta observar a qualidade de advogados que o dinheiro pode comprar, a diferença de cela em que universitários e não universitários são trancafiados, a demora na finalização dos processos quando há um empenho nesse sentido, a justiça de classe para nos darmos conta de que, como dizia cinicamente Getúlio Vargas “a lei... ora, a lei”. Fingimos estar numa ilha aonde o preconceito não chegou, mas os jogadores negros são chamados de “macacos” em qualquer estádio de futebol por colegas de outros times e torcedores adversários, as diferenças de remuneração são abissais e prejudicam mulheres e negros, peões de obras ainda são “baianos” em São Paulo e “paraíbas” no Rio de Janeiro e as calçadas de nossas cidades não permitem um caminhar tranqüilo de idosos, grávidas e crianças, para não dizer do completo desprezo com que portadores de qualquer tipo de deficiências são tratados pelos responsáveis pela administração municipal. De qualquer partido. E agora fingimos que o ensino público está em via de se tornar universal, para alegria dos que se fiam em estatísticas, mas profunda decepção dos que têm um compromisso sério com a educação.
A reprodução da desigualdade, uma das faces mais cruéis das sociedades, que poderia ser mitigada em parte pela escolarização, acaba tendo nela uma das faces mais evidentes e cruéis. Uma autora de livros infantis e juvenis de grande prestígio, que por militância visita classes em escolas públicas de sétima e oitava séries, escrevendo livros hipotéticos em conjunto com os alunos, contou-me que a felicidade dos adolescentes com sua presença é espantosamente desproporcional ao seu nível de compreensão das leituras feitas, que é inferior ao resultado obtido por ela em quartas séries de escolas particulares de bom nível! Não é, pois, o caso de nivelar por cima o ensino fundamental antes de universalizar o ensino médio para toda a população? E, então, proporcionar um ensino médio de ótimo nível que não leve, necessariamente, os alunos de escola pública a se conformar com as faculdades particulares, algumas das quais de muito baixo nível, enquanto que os cursos mais concorridos das melhores faculdades públicas acabam ficando com os alunos das melhores escolares particulares?
Nada contra as universidades particulares, algumas resultado de investimentos humanos e empresariais notáveis, mas é ainda na universidade pública, prioritariamente, que ficam os cursos de excelência, que é onde se pesquisa, que são oferecidas as melhores possibilidades profissionais aos alunos. Muito melhor do que estabelecer cotas para minorias seria ter um ensino médio democratizador que permitisse o ingresso dos melhores e não apenas dos que tiveram pais mais ricos. Teríamos assim a escola não como reprodutora das desigualdades, mas como instituição democrática.
Professores mais motivados, leitores, escolas bem aparelhadas (não com parafernálias eletrônicas, mas com salas arejadas, carteiras confortáveis e, principalmente, boas bibliotecas) constituem-se pré-requisito para uma escola democrática. É possível? Evidentemente. É viável? Seguramente. O momento é este. Basta de analfabetismo diplomado.