Uma nação em busca de heróis
O Estado de S. Paulo


              Se é verdade que povo feliz é aquele que não precisa de heróis, somos um povo duplamente infeliz: por estarmos sempre em busca deles e por não os encontrarmos, pelo menos na dimensão que desejamos. Um dos casos mais significativos é o de Tancredo Neves, com sua agonia partilhada por todo o povo comparado pela mídia a santos que sacrificavam a vida pelo bem de todos e a Tiradentes, o “protomártir” da independência (Tancredo seria o mártir da redemocratização). Todos os que me lêem se lembram de que o país parou quando de seu enterro, as pessoas choravam na rua, o político mineiro era comparado a De Gaule, a Adenauer, a Ben Gurion e até a Lincoln pelas personalidades entrevistadas na ocasião. Hoje, ninguém mais se lembra dele, sua prática política de transição sem mudanças é exercida com maquiavélica competência por muitos de nossos líderes – segundo alguns, até pelo próprio Fernando Henrique – e é provável que seu nome não ajude a eleger sequer o prefeito de São João del Rey.
Por vezes elegemos nossos heróis salvadores de forma açodada (não foi o nosso país que escolheu, livremente, para presidente, um tal de Fernando Collor?). Outras vezes, ao procurarmos o herói perfeito e imaculado – que, por definição, não existe –, desapontamo-nos com a dimensão humana que eles acabam por revelar e passamos a rejeitá-los por inteiro. Isso é muito visível com nossos heróis esportivos: nem Pelé, nossa maior glória, no esporte que mais toca nossas almas e mentes, escapou do descrédito. Mesmo sendo o brasileiro mais famoso do mundo em qualquer época e de qualquer área, sofre por aqui o desgaste de ser falível, gente, enfim. Parece que isso é pouco para nós.
Deixando de lado a risível tentativa de uma emissora de TV que quer transformar um perdedor incorrigível num novo herói das pistas (tenho a impressão de que nem todo o dinheiro que Rubinho ganha compensa a evidência, renovada a cada domingo, de que ele não passa de um corredor de segunda), por vezes fazemos escolhas mais felizes. Guga, um garotão irreverente, profundamente identificado com a auto-imagem do brasileiro, supera o elitismo do seu esporte e nos torna, a todos, fãs de “aces” e voleios, telespectadores nervosos que sofrem a cada set não fechado. Tomara que viva muito, em função do que, fatalmente, acabará perdendo seu status de herói. A alternativa é tornar-se um Ayrton Senna de raquete. Este, para a maioria da população, era o homem que compensava nossos fracassos como nação, nos redimia de nossas derrotas como indivíduos e, portanto a Bandeira Nacional a cada corrida vencedora, “mostrava o valor do brasileiro”. Morreu jovem, correndo, lutando por todos (pelo menos no nosso imaginário). Tivesse vivido um pouco mais, sobrevivido à glória, seria engolido pelo cotidiano, consumido e descartado por falhas reais ou imaginárias.
Nação curiosamente maníaco-depressiva, criamos heróis, jogamos neles todas as nossas esperanças, sentimo-nos vencedores e poderosos juntamente com eles e, no minuto seguinte, os destruímos, e nos destruímos juntamente com eles. Da mesma forma que o psicótico, oscilamos da euforia à depressão, com raros momentos de estabilidade e equilíbrio. E, o mais grave, procuramos sempre a solução ou a culpa vinda de fora, magicamente. A própria maneira de explicarmos nossa história comprova isso. Durante muitos anos, dizem nossos livros, os brasileiros nada podiam fazer porque éramos colônia de Portugal. Depois, durante a monarquia, o autoritarismo do Império impediu que fôssemos responsáveis por nossos próprios destinos. Na época da República Velha, antidemocrática, éramos dominados pelos oligarcas do café-com-leite. Em seguida, por Vargas. Logo depois, pelos militares e, hoje, pelo FMI... É como se nunca fôssemos responsáveis pelos nossos atos, pela corrupção, pela violência, pela injustiça social absurda com a qual convivemos. Votamos ou com a sensação do “não adianta mesmo” ou com a ilusão do “este vai redimir o povo”. Depois do “ato cívico” voltamos bovinamente às nossas poltronas e, enquanto nos envolvemos com as novelas televisivas, aguardamos o que “eles” vão fazer, ratificando, pela omissão, o divórcio entre sociedade e Estado, que é uma das marcas registradas de nossa história.
Perguntaram-me outro dia se via a possibilidade da volta de um regime de exceção no Brasil. Por mais deslocada de seu tempo que possa ser, não me parece uma idéia tão absurda. As taxas de desemprego estão altíssimas; a pressão de consumo aguça a sensação de pobreza de muitos; os Legislativos, em todos os níveis, estão desacreditados; as dívidas do País, tanto a interna como a externa, não param de crescer; a violência e a sensação de desamparo atemorizam nosso cotidiano e povoam o nosso imaginário; e, talvez o mais grave, não temos demonstrado maturidade suficiente para construir a democracia de que precisamos: ainda nos iludimos com xerifes truculentos e tocadores de obras de reputação duvidosa. Se aparecer amanhã alguém com um pouco mais de carisma...
Temos de trabalhar com a idéia de que não há soluções miraculosas. Nenhum político, sem exceção, vai resolver os problemas das cidades brasileiras num passe de mágica, com algumas penadas. Contudo, enquanto alguns, seguramente, representam um retrocesso, uma volta atrás, há os que, sem se apresentar como heróis salvadores, procuram trabalhar em torno de programas consistentes, para cuja realização pretendem mobilizar a população, sem o que ninguém fará nada. Aceitar o fato de que não precisamos de semideuses, mas de seres humanos sérios, competentes e comprometidos com o bem-estar dos cidadãos será uma demonstração de maturidade que só poderá beneficiar nossas cidades.