Somos todos condenados
O Estado de S. Paulo


Cada vez menos gente é alocada na atividade industrial, para produzir cada vez mais, graças à automação e aos modernos métodos de gestão. Isso tem, como diria minha tia Ana, seu lado bom e seu lado ruim. Se, de um lado, há uma diminuição de custos, o que permite a ampliação do mercado consumidor, integrando pessoas que há poucos anos apenas sonhavam em possuir certos bens, do outro, há uma irresistível tendência a marginalizar do mercado de trabalho um número crescente de profissionais.
Em outras palavras, da forma como a economia mundial está sendo tocada, a questão do desemprego não é um problema conjuntural, mas estrutural, e o mínimo que os governos responsáveis poderiam estar fazendo seria minimizá-lo, seja na sua essência, seja nas conseqüências que provoca.
A maneira fácil de enfrentar a questão é jogá-la para cima, dizer que é um problema mundial, vai passar da mesma forma como começou, o desemprego na Europa é muito superior ao do Brasil. Sofismas. A verdade é que, em nosso país, o desemprego amplia o leque de miseráveis, marginais, desassistidos. Embora não funcione mais o Estado de bem-estar social que caracterizou a maioria das democracias européias no pós-guerra, os seguros sociais para os desempregados europeus lhes dão, ao menos, condição mínima de sobrevivência, o que não é o caso dos nossos sem-emprego. Aqui, joga-se o pai ou a mãe de família às feras. Não tem como pagar o aluguel ou a prestação de sua casinha, não tem como pagar a passagem do ônibus para ir de sua casa até os locais onde teoricamente poderia arranjar emprego, não tem apoio dentro da comunidade do seu bairro, não tem espaços de convivência social que vão além do boteco. O que lhe resta?
Não, não vou dizer que lhe resta transformar-se em marginal, pois marginal já ficou. Se tenta ser marreteiro, tem de entrar nos esquemas de propinas a fiscais, tendo de dividir o parco ganho com seus “sócios”. Com isso ganha o direito de atravancar ruas e incomodar lojistas e passantes. Se não tem sequer dinheiro para vender quinquilharias nas ruas ou nos faróis, investe seus últimos reais buscando novo emprego até desistir e tornar-se mais um homem a zanzar, sem rumo, pelas ruas de seu bairro. O seu distante Jardim qualquer coisa foi, em sua origem, um loteamento clandestino, o que significa apenas que enriqueceu os vendedores e instalou precariamente milhares de pessoas. A especulação imobiliária, da qual foi vítima, engoliu áreas coletivas com campinhos de futebol, praças ou áreas verdes. A periferia de uma cidade como São Paulo, graças à qual temos o título de metrópole mundial, é um ajuntamento desordenado de casas e ruas, com pessoas sujeitas a uma violência cotidiana que banaliza a vida humana, sem nenhum equipamento público que possa caracterizá-la como cidade moderna. Seus “points”, além do bar, são, quando existem, a escola, o posto policial e a igreja, geralmente evangélica. O centro aglutinador da família é a televisão, a novela e o jornal das 8, de maneira especial.
Problema “deles”? Não, problema nosso. Afinal, somos todos condenados. Somos nós que colocamos grades de segurança cada vez mais altas bloqueando a entrada de nossas casas e nossos prédios. Somos nós que investimos fortunas em segurança privada, instalando olheiros eletrônicos, militarizando as portarias dos prédios. Somos nós que nos assustamos com as sombras, substituímos as agradáveis caminhadas noturnas por monótonas noitadas diante da TV, consideramos cada pessoa mal vestida um suspeito de rapto ou assalto, moramos numa cidade que não usufruímos, como se tivéssemos de pagar pelo crime de aqui morar.
Embora seja simplista pretender colocar a violência urbana como contrapartida do desemprego, é evidente supor que pessoas desocupadas, sem dinheiro e sem opções de lazer em seu bairro, submetidas, por outro lado, a um volume maciço de pressão de consumo, busquem, eventualmente, resolver seus problemas de forma pouco ortodoxa. Não é questão de justificar, mas de compreender.
Não podemos deixar que em bairros de nossa periferia acabe prevalecendo uma organização econômica, social e política paralela, como em morros cariocas. Para isso é necessário que paremos de olhar apenas para o próprio umbigo e – até pelo bem do umbigo – comecemos a atacar os problemas do mundo que nos cerca.