Conto de Natal
Correio Braziliense


José Gilberto sempre foi um homem preocupado com o social. Quando criança tirava o pirulito da boca para entregar a qualquer menino com que cruzasse. Sempre que ganhava presentes de Natal buscava no fundo do seu armário algum brinquedo velho para dar aos pobres que não mereciam uma visita do Papai Noel.
Essa tendência só se aprofundou com o tempo. No colégio ampliou o seu espectro de preocupações, integrando grupos como os conhecidos Rademeam (radicais defensores do meio ambiente) e Lujupo (lutadores pela justiça entre os povos). Os professores de Geografia e História, respectivamente, explicavam que a responsabilidade de cada um ia muito alem da distribuição de pirulitos usados ou de brinquedos quebrados, razão pela qual Zé Giba (já começava a ser chamado pelo apelido, que a mãe odiava, mas que o acompanharia por toda a vida) começou a tornar-se um jovem ser politicamente correto.
Foi, porem, na faculdade que Zé Giba se revelou e se distinguiu. Hábil com a palavra, usava-a para denunciar a desigualdade social que permeava as relações entre as classes e para demonstrar a necessidade de profundas transformações sociais no país. Sua fala era apaixonante, pois, embora nunca fosse um grande orador, sempre foi muito articulado e convincente, não abrindo espaço para contestações. Às numerosas garotas com as quais transou, envolvidas por seu talento – e que lhe trouxeram alguns filhos inesperados que ele não assumiu, em nome da revolução - ele dizia que a sociedade burguesa tinha que ser destruída em todos os lugares, inclusive na cama, no carro e em cima de sua mesa de diretor do centro acadêmico. Dizia também que para destruí-la todos os instrumentos deveriam ser utilizados, mas prefiro não entrar em desagradáveis detalhes eróticos. O importante é que Zé Giba, na sua fase de estudante universitário, começou a se dar conta de que ele tinha grande talento político e, mais que isso, que gostava do poder que obtinha com esse talento, mesmo que isso ainda não fosse muito alem de envolver alguns seguidores fieis e algumas garotas do interior e de outros estados que se sentiam meio solitários em São Paulo.
Quando se formou, Zé Giba entrou para a política partidária. Segundo ele mesmo essa era uma área muito suspeita, com grandes interesses manipulando os poderes do Estado. Ele tinha até dó dos que liam jornais e viam noticiosos na televisão e se consideravam bem informados. O movimento verdadeiro, aquele que explicava, no final das contas, o movimento da superfície, era percebido por poucos e desvendado por muito poucos. Ele citava sempre uma frase que atribuía a Marx segundo a qual nada mais era distante do real do que a aparência do real. O que Zé Giba queria não era aparecer, mas manipular os que aparecem, estar por trás do movimento que todos vêm. Não era por outra razão que lia tudo que podia sobre Rasputin e Pombal, e preferia Kissinger a Nixon ou Golbery a Geisel.
Quando, finalmente, chegou ao poder, empenhou-se em colocar sua ideologia em ação. Mas, afinal, qual era sua ideologia? Tinha superado a ingenuidade da infância e, de resto, não gostava mais de pirulito. Tinha perdido a paciência com os perdedores, aqueles que parecem insistir em ficar à margem da sociedade. Irritava-se com ex-companheiros que entraram para a carreira acadêmica: o sujeito ficava anos para parir uma tese e queria que o governo ainda lhe pagasse um salário decente... De resto, não gostava mais da cerveja aguada que os ex-colegas, muitos deles barbudos, tomavam. Preferia um bom Black Label de 12 anos, ou um gim inglês, aromático. Não suportava também alguns deputados do seu partido que tinham a petulância de cobrá-lo pela efetivação de itens do programa político aprovado em dezenas de encontros e convenções. “Esse povo não sabe que política é a arte das alianças e das mudanças? Uma coisa é ser oposição, outra é dirigir um país”. Deu-se conta de que fora muito injusto ao criticar velhos líderes regionais, chefes de oligarquias e gente da direita. Afinal, se estão no poder há tanto tempo, devem ter suas virtudes, concluía, enquanto os panacas dos velhos colegas não chegavam nem a chefes de departamento.
Compromisso com o passado, com os princípios? Sim, claro. Lembrou-se das lições do professor de História, no colégio, do compromisso com o mundo todo. À noite sonhou que o Brasil tinha finalmente um líder do nível de Nasser, do Egito, Sukarno, na Indonésia ou mesmo Tito, da Iugoslávia, e esse líder era ele. Sonhou que se reunia com eles e tirava o poder dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, sob a bandeira do terceiro mundismo revisitado. Acordou de manhã, ligou para o presidente e perguntou se ele não queria visitar os ditadores da Líbia e da Síria. Afinal, era um homem de princípios.
Na noite de Natal fez o balanço do ano e concluiu que fora altamente positivo. E para não dizer que esquecera do social distribuiu os vinte pirulitos e brinquedos para os filhos dos funcionários do seu ministério. Pirulitos e brinquedos novos, esclareça-se. Não fora à toa que chegara ao poder.