Bens culturais para todos?
Correio Braziliense


A cultura é a única coisa que diferencia o ser humano dos outros animais. Enquanto esses já nascem instrumentalizados para suportar o clima e o meio ambiente (ursos, focas), construir casas (joão-de-barro, abelhas), defender-se dos inimigos por armas ou mimetismo (tubarão, linguado), o ser humano vem ao mundo incapaz de sobreviver sem a proteção dos pais e sem a aprendizagem social, que, em bom português, pode ser chamada de cultura.
É por meio do conhecimento acumulado por muitas gerações que aprendemos a fabricar nossas roupas, aquecedores e aparelhos de ar condicionado para nos defender do clima, edificar nossas casas para nos proteger e criar nossas sofisticadas (e até excessivas) armas que nos tornaram o animal mais temível sobre a face da terra.
Esse conhecimento acumulado nos permite o acesso não apenas à cultura no seu sentido antropológico (sobre a qual nos referimos até agora), mas, também, no sentido restrito, o de manifestação do gênio humano. Aí falamos de coisas maravilhosas, em todas as áreas, como o do teatro de Nelson Rodrigues, de Sheakespeare, de Sófocles. Dos textos literários de Machado de Assis, de Nabokov, de Lorca e de Maupassant. De telas de Picasso, Leonardo da Vinci e Rembrandt. Da música de Bach, de Mozart, de Beethoven. Do cinema de Chaplin, de Eisenstein, de Woody Allen. Da escultura, da arquitetura, do urbanismo, da Filosofia, da História.
Por distorções históricas muita gente pensa que o acesso aos bens culturais é e deva continuar sendo privilégio de uma minoria. Os esnobes consideram que Bach, por exemplo, só é acessível a poucos e bons e que deliciar-se com um Van Gogh exige décadas de bom gosto embebido em muito dinheiro. Ora, quem visita um museu europeu pode observar a chusma de jovens estudantes de escolas públicas, freqüentemente filhos de imigrantes, visitando e se maravilhando com pinturas que emocionam multidões há mais de um século. E basta ir à Sala São Paulo, na Estação Júlio Prestes, em São Paulo, num domingo de manhã, para ver centenas de populares extasiando-se diante de mestres imortais da música.
Estamos diante de duas questões distintas: 1) não é verdade que as pessoas se satisfazem com o que se lhes dá (programas de televisão horrorosos, música brega ou breganeja e por aí afora). O gosto é algo cultivado e a sensibilidade para as manifestações culturais pode ser encontrada igualmente em diferentes camadas da população, não sendo privilégio da elite; 2) a maior parte da população brasileira não tem condições de adquirir bens culturais. Há que permitir seu acesso a eles de outras maneiras.
               Certo, não é todo mundo que pode pagar a entrada a uma peça de teatro, de um concerto com uma grande orquestra estrangeira ou mesmo o preço de um bom livro. A esses eu diria que menos ainda poderão comprar um Van Gogh ou um Di Cavalcanti e é para isso que existem museus. Da mesma forma devem existir concertos para todos e, principalmente, bibliotecas públicas. Não me refiro a depósitos ou cemitério de livros, mas bibliotecas vivas, com acervo atualizado, com gente preparada para atender e orientar os visitantes. Gente bem treinada, que ajude tanto os que pesquisam quanto aqueles que queiram apenas se deleitar com a leitura.
Propiciar o acesso aos bens culturais deveria ser o primeiro movimento de todo administrador público investido em suas funções. Além do seu caráter cidadão é algo que, em última instância, estimula o encontro de cada ser humano com a essência mesma de sua humanidade. Mas não é isso o que se vê, infelizmente. Aqui, conspira-se para diminuir drasticamente a aposentadoria da classe média (nada contra um belo corte para os marajás, é claro), a mesma que freqüenta teatros e concertos nas grandes cidades. Ali, submete-se uma biblioteca pública, como a de Belo Horizonte, em plena Praça da Liberdade, ao vexame de ter que fechar suas portas à noite por pura falta de funcionários. Muitos dos milhares de consulentes ficarão sem acesso a bens culturais, porque a regra é seguida à risca por políticos de todos os partidos: economizar no início do mandato para construir, nos dois últimos anos, o que garante a reeleição.
              
E o discurso sobre a democracia e cidadania, aquele da campanha? Discurso é discurso, governar é coisa séria, não é mesmo?