Um cucaracho em Madri
Correio Braziliense


Madri  está irreconhecível para quem só esteve aqui uma vez, há quase vinte anos. Grande parte dos edifícios públicos sofreu uma bela cirurgia embelezadora, as ruas são compulsivamente limpas pelos mais diferentes tipos de geringonças varredoras e sugadoras, a presença da polícia passa uma inegável sensação de segurança aos moradores e turistas, as ruas ficam cheias e alegres quase o tempo todo, os museus ostentam orgulhosas filas permanentes e é tão difícil chegar até as obras mais famosas do Prado que espiar o quadro As meninas, de Velasquez, é um feito digno de ser comemorado.
Comemorar, aliás, e algo que os espanhóis gostam e sabem fazer. Os numerosos cafés, bares e restaurantes andam lotados nessa primavera chuvosa. (Cafés, por sinal, de dar inveja a qualquer brasileiro, onde se escolhe a origem daquele que se quer tomar, sem que tenhamos que ficar submetidos à ditadura do grão de baixa qualidade, queimado ao extremo para disfarçar seu tipo inferior e cujo amargor desconfortável é freqüentemente confundido com vigor). Mas andam lotadas também as livrarias. Ontem mesmo, ouvi um ohhh geral de desaprovação ao ser anunciado, na loja de uma rede, que em meia hora a livraria seria fechada e que nos apressássemos nas escolhas. Em seguida, centenas de pessoas se precipitaram escada rolante abaixo, formando filas nos caixas que me deixaram com água na boca.
Como ando escrevendo, sem pressa, e a quatro mãos com a minha mulher, um livro sobre os imigrantes que ajudaram a construir o Brasil, não tive como deixar de lembrar que os espanhóis constituíam exatamente o grupo mais pobre e que gozava de menos apoio por parte de seu país de origem, mesmo se comparado com gente simples como portugueses, italianos, judeus, árabes, japoneses, e até suíços e alemães que vinham para o nosso país. De exportadores de mão-de-obra, até muito pouco tempo atrás, os espanhóis conseguiram inverter a equação e, a partir da excepcional costura política coordenada por Filipe Gonzáles e de uma entrada muito bem executada na comunidade européia, a Espanha atrai imigrantes de outros países a ponto de isso já ser considerado um problema social e econômico por aqui.
De fato, ao lado de debates sérios e conseqüentes, já se enxerga aqui e ali um certo chauvinismo que precisa ser muito bem trabalhado. Sobre os brasileiros os sentimentos são francamente contraditórios: de um lado ama-se Ronaldinho – o gaúcho, do Barcelona, não o carioca do Real Madrid – a ponto de os jornais sérios derramarem mais loas para ele do que para o Príncipe de Astúrias, sucessor do trono, que acabou de se casar, e Júlio Baptista, (sim, aquele  que, quando jogava no São Paulo era chamado de "grosso"). De outro, somos desagradavelmente identificados com mão-de-obra desqualificada e mesmo com a prostituição feminina e masculina. Nada que nos deixe muito orgulhosos, enfim.
Mas já há bares oferecendo caipirinha e cafezinho (assim mesmo, com “nh” e não com til no n). E o setor de música brasileira nas lojas de cd é dos melhores, rivalizando apenas com o item "tango", cuja revitalização os argentinos devem muito a Piazzola, e com a musica cubana. Já em livros, bem que a Câmara Brasileira do Livro, junto com o Itamarati, poderia fazer um trabalho conjunto no sentido de viabilizar a presença de obras importantes em estantes de livrarias estrangeiras, talvez por meio do intercâmbio de traduções de livros básicos ou algo do gênero. É assustadora nossa inexistência escrita. Assustadora.
           Mas assustador mesmo é, além da nossa indigência intelectual, nossa pobreza material. A Espanha do euro não esta fácil para o nosso pobre real. Com o salário mínimo brasileiro mensal em 260 reais, algo como 85 euros, um pobre ministro do nosso país, que recebesse de ajuda de custo diária o que muitos correligionários seus recebem num mês, conseguiria se alojar em um hotel muito simples, por uma noite apenas e sem café da manhã. Mas se ele se esquecesse que se origina de um país pobre e resolvesse comer, as coisas se complicariam muito. Um amigo brasileiro, que trabalha numa embaixada em Madri insiste em me dizer que ministro nunca viaja sozinho e só fica em hotel cinco estrelas. Embora ele não seja jornalista, nem americano, acho que seu objetivo é detratar nossas autoridades...
Por que, a ser verdade o que conta, teríamos que fazer as contas seguintes: um hotel quatro estrelas, vá lá, não sai por menos de 200 euros – 800 reais – por uma noite. Uma refeição a dois, composta de peixe – abundante e bom por aqui –, com vinho nacional chega brincando a 100 euros, outros 400 reais. Outra refeição, outros 400 reais. Considerando, então, que o camarada passe um dia em Madri, durma, almoce e jante, dispense o café da manhã e fique num hotel quatro estrelas, ele já terá gasto 1600 reais, sem ir ao museu, sem tomar condução, sem comprar a camiseta com tourinho estilizado para o cunhado... Só para lembrar quem já se perdeu com as minhas contas, 1600 reais corresponde, no Brasil, a mais de cinco meses de trabalho com o salário vigente. O novo, gente, o de 260 reais. É verdade que mais vale o gosto do que dois vinténs, mas meio ano de trabalho por um dia em Madri sem café da manha... Não, não e fácil ser cucaracho em Madri.