Sem gramática, cidadania na prática
Correio Braziliense


Num país em que o presidente de um importante clube de futebol tem a “cara de pau” de declarar publicamente que sonega dinheiro do INSS, a discussão sobre o sentido da cidadania se impõe. Preocupado em resolver apenas os seus problemas, em detrimento daqueles de toda a sociedade, temos que reconhecer que o desabafo do presidente do Palmeiras apenas explicitou uma forma de agir comum entre nós, embora desta feita o descaramento do cartola tenha sido um pouco, digamos, excessivo, principalmente depois de uma longa e tormentosa discussão sobre um aumento, não aceito pelo governo, de 50 centavos diários no salário mínimo, sob a alegação de que toda essa fortuna dada aos aposentados oneraria extraordinariamente a nossa previdência pública. Vamos, portanto, uma vez mais, usar este espaço para discutir a cidadania.
A idéia de que só é cidadão aquele que possui direitos civis, políticos e sociais já é de domínio público, pelo menos após o livro História da Cidadania. Publicado em 2003, com a colaboração de importantes historiadores, filósofos, escritores e cientistas sociais brasileiros, tornou-se rapidamente um marco teórico e uma referência na bibliografia brasileira. O objetivo da obra, que era responder a indagações sobre a origem, o sentido e a historicidade da cidadania, parece ter sido alcançado.
Restava, contudo, responder a outras espécies de indagações, estas de ordem prática: está, de fato, a sociedade brasileira mobilizada a favor da cidadania e, nesse caso, que importantes ações, no sentido de estender a cidadania a todos, estão sendo executadas – e ainda, por quem? Quais os obstáculos que estão sendo enfrentados para que essas ações se concretizem? Quais os apoios recebidos e quais os agentes reais desse apoio? Que desafios ainda encontram pela frente aqueles que, abrindo mão de interesses pessoais, partem para a prática cidadã, seja na qualidade de executores de políticas públicas, seja na condição de gestores de entidades civis, seja, até, como simples cidadãos responsáveis?
A partir dessas questões nos perguntamos se era possível juntar, num único livro, como exemplo de um Brasil produtivo e responsável, a voz de representantes do governo e da sociedade civil, militantes de ONGs e executivos encarregados do setor de responsabilidade civil nas empresas.
Havia, e não há por que omitir, ainda um outro desafio, que era o de não dar à obra um caráter partidário, uma vez que não é privilegio de nenhuma agremiação o dever de agir pela cidadania. De resto, com o confessado fim do estado de bem estar social no mundo ocidental, a responsabilidade social passou a ser uma obrigação de todos, embora ainda hajam aqueles que se julgam os únicos donos do tema e os verdadeiros militantes, esquecendo que nada menos cidadão do que se atribuir verdades reveladas e atitudes de profetas do caos.
Assim, convidamos uma série de cidadãos especiais para narrar suas experiências e, a partir delas, tentar traçar parâmetros que possam auxiliar, tanto na elaboração de políticas publicas mais consistentes (mas sempre exeqüíveis) quanto de práticas empresariais mais comprometidas com as necessidades da sociedade (sem ferir o principio do lucro legítimo). Muita ambição? Talvez. Mas conseguimos a proeza de colocar lado a lado juízes e promotores, jornalistas e economistas, administradores e advogados, historiadores e antropólogos, urbanistas e educadores, psicólogos e matemáticos. O livro abriga petistas e tucanos, feministas e ecologistas, empresários e administradores públicos. É curioso verificar que, embora sem haver uma unidade na ação, há uma unidade de propósitos. Confessada, ou inconfessadamente, os autores buscam engendrar pessoas com mentalidade menos autocentrada e consumista – fruto, talvez, de um momento histórico em que parece que as utopias foram aparentemente vencidas pelo pragmatismo globalizado e carente de generosidade e humanismo.
Nossos autores, contudo, não aceitam o mundo como ele é. Também não ficam sentados reclamando dele: arregaçam as mangas e vão para a luta. Se há em todos eles um traço comum é o fato de serem batalhadores, gente que luta pela cidadania, acredita no que faz. Além disso, o livro apresenta uma notável unidade de propósitos, dentro de uma previsível diversidade de ação. Pequenos esbarrões acontecem, farpas acidentais são atiradas, o que só contribui para pontuar com mais ênfase algumas das relevantes questões levantadas como a inclusão pela leitura, a possibilidade de uma justiça cidadã, a responsabilidade social das empresas, o voluntariado, o resgate dos jovens pela educação formal ou informal, o combate à corrupção, a igualdade das mulheres, a questão ambiental, o direito do consumidor e tantos outros. São vinte e cinco cidadãos destacados escrevendo vinte e um textos que se integram.
Práticas de cidadania não é, portanto, um livro com uma só resposta, mas com a sugestão de múltiplos caminhos possíveis, alguns já desbravados, outros apenas sugeridos, mas todos merecedores da atenção por parte daqueles que não acreditam que respostas a inquietações existenciais encontram-se apenas no fundo de um copo, no uso compulsivo do cartão de crédito, ou no bisturi de um cirurgião plástico, mas, principalmente na solidariedade e na criação de uma sociedade mais digna para todos.