Por uma escola pública de qualidade
Correio Braziliense


Foi uma festa da cultura: centenas de milhares de pessoas saíram de casa para visitar a Bienal do livro de São Paulo. Mais: quase metade dos visitantes não morava em São Paulo, o que demonstra que o evento é um chamariz da metrópole e ocupa, efetivamente, um importante papel entre as atrações culturais da cidade. Culturais, sim, pois além de dezenas de milhares de títulos, praticamente toda a produção editorial brasileira, exposta em quase vinte mil metros quadrados de estandes, a Bienal do Livro promoveu dezenas de palestras, debates, mesas-redondas e seminários, incluindo o Salão de Idéias, para o público em geral, e o Projeto Universidade, destinado a aprofundar temas e promover o encontro entre professores e universitários. Todos os eventos muito concorridos e com troca de idéias e experiências que resultaram numa aproximação entre o saber acadêmico e os responsáveis pelas políticas públicas.
Um dos debates mais interessantes foi aquele em que se discutiu a possibilidade de haver uma escola pública de qualidade. A simples formulação da questão indica sua existência, ou melhor, inexistência, uma vez que é lugar-comum dizer-se que a escola pública de hoje não tem qualidade, se comparada ao que já foi. É verdade que nem toda escola particular é boa, muitas não passam de caça-níqueis mais ou menos sofisticados, em que a vontade de inserir os filhos num ambiente social “selecionado” leva muitas famílias a fazerem longos e inócuos sacrifícios sem resultados apreciáveis. Mas, ao contrário do que acontecia há algumas décadas, no rol das grandes escolas de ensino fundamental e médio não pontificam mais os antigos colégios estaduais, mas sim os particulares, sempre muito caros e, portanto, economicamente seletivos.
A questão, portanto, se impõe: é possível uma escola pública de qualidade? Antes de mais nada, tem a obrigação de ser possível, pois é lei e está na própria Constituição. Tem que ser possível, ainda, porque é uma forma de permitir igualdade de oportunidades (ou quase isso) entre os que podem pagar uma escola particular e os que não podem. O oposto seria (ou é) reproduzir a desigualdade. Tem que ser possível também por ser uma imposição ética. E, afinal, somos ou não seres éticos?
Talvez alguém não tenha se deixado impressionar com as razões de princípio acima elencadas e solicite argumentos mais práticos, motivos mais concretos. Lá vão eles: só uma escola pública de qualidade pode nos fazer, como país, dar o salto qualitativo que tanto aspiramos, por meio da qualificação de nossos jovens. Um país cuja população não sabe ler. Que, quando sabe, lê pouco, e quando, finalmente, lê, pouco entende (segundo a constatação insuspeita de um órgão da própria ONU) e não tem muitas chances num mundo competitivo e exigente em termos de qualificação de sua força de trabalho. Há mais: a era de comunicação e serviços em que estamos prestes a viver tende a substituir a força física pela sutileza e pela educação formal. Os países que não agirem a favor da história ficarão fadados a se distanciar cada vez mais daqueles outros, ricos ou não, que colocam a educação como prioridade real.
O fato é que ainda não temos uma escola pública de qualidade, mas, ao contrário dos pessimistas, creio que ela ainda é possível, além de desejável e que, de alguma forma demos alguns passos, embora tímidos, em sua direção. Tivemos, há tempos, aquela escola pública que nossa geração freqüentou, prezado leitor, nós da classe média e uns poucos e excepcionais alunos oriundos de famílias pobres. Mais tarde deu-se o sucateamento dessa escola pública: quando ela se tornou acessível a todos, os detentores do poder decidiram que pobre não precisa de escola boa. Felizmente, nesses últimos anos a qualidade média de nossos governantes, em geral, melhorou, assim como melhorou o nível de seus assessores na área da educação. Tanto em âmbito federal, como em vários estados e muitos municípios, geridos por diferentes partidos políticos, implantou-se a consciência de que a educação de qualidade é, de fato, um direito do cidadão e um dever do Estado. Sei que em vários municípios procura-se escamotear a legislação e inclui-se como despesa de educação as viagens da primeira-dama ao shopping da cidade grande mais próxima ou a pescaria do senhor alcaide com sua curriola no Pantanal, mas esta não é mais a regra: já existe a consciência, pelo menos.
O que falta, então? Ao meu ver, além da óbvia remuneração decente aos professores – condição necessária, mas não suficiente – falta uma grande mobilização nacional a favor da educação, envolvendo as universidades federais e demais universidades públicas e até várias particulares, com a finalidade de qualificar, requalificar e atualizar todos os professores da rede pública brasileira. Algo grandioso mesmo, algo que mexesse com o país todo, fazendo com que o saber, por vezes estéril, da universidade brasileira, circulasse pelos confins do país, frutificando e reproduzindo-se. É um programa de governo factível, desde que se tenha vontade política para tanto, uma vez que o Brasil entra no século XXI depurado de estruturas oligárquicas regionais que pareciam invencíveis e atento contra a apropriação do público pelo privado, traços que marcaram nossos primeiros 500 anos de existência.