O Brasil não toma juízo
O Estado de S. Paulo


 Um dos assuntos recorrentes neste país é saber se o Brasil tem jeito. O simples fato de se gastar tempo e energia especulando sobre o tema é uma comprovação da desconfiança que nós, brasileiros, temos com relação à nação em que vivemos. Dizemos que não tem jeito o filho do vizinho que se recusa a estudar, aquela nossa prima namoradeira (com mais do que idade para se casar); o cunhado que troca horas de trabalho pela sinuca com cerveja do botequim. Não tomar jeito é sinônimo de não amadurecer, não assumir a idade que se tem e as responsabilidades dela advindas. Na verdade, desconfiamos todos que este nosso país, com séculos de ocupação e 500 anos de contato com a civilização ocidental, ainda não tenha atingido sua maturidade. E, o que é pior, tememos que nunca venha a atingir.
              Como não somos responsáveis pelo filho do vizinho, pela prima namoradeira nem mesmo pelo cunhado folgado, constatar sua irresponsabilidade é um simples exercício de observar o outro, o de fora. Já com relação ao país em que vivemos a coisa se complica: como não podemos atribuir imaturidade às montanhas, rios ou vales, ou falta de juízo às estradas, matas e nascentes, quando nos referimos ao Brasil estamos, supostamente, falando de seus habitantes, todos eles, incluindo nós mesmos. Mas não. Como se conseguíssemos separar o ser que fala do ser falado, embora o falado seja o próprio falante, repetimos o exercício esquizofrênico de jogadores de futebol que falam de si mesmos apenas na terceira pessoa. Assim fica mais fácil falar do Brasil apenas como entidade externa, como figura mítica a respeito da qual não temos a menor responsabilidade.
              É como se tivéssemos dois brasis, um o nosso, privado, que com galhardia tentamos sustentar, e o outro, coletivo, aquele que “não tem jeito”, que está sendo, historicamente, destruído pelo conjunto de brasileiros (menos nós). Para os ricos, a culpa é do “povinho”, mesmo os que se matam de trabalhar por um salário irrisório; para os pobres, é das “elites”, mesmo os empresários criativos que lutam com dificuldade para manter suas empresas e os postos de serviço que elas geram; para os profissionais liberais que odeiam dar recibo pelos seus serviços e, conseqüentemente, pagar impostos (“sei lá onde o dinheiro vai parar” é a desculpa esfarrapada oferecida), os responsáveis são os funcionários públicos, que também levam pau de ministros, mesmo dos que têm por hábito passar agradáveis finais de semana em Fernando de Noronha em vôos exclusivos patrocinados pelos cofres públicos. E o equilíbrio das contas públicas (a bola da vez para o nosso salto para o futuro), pelo discurso presidencial e de parte da imprensa acrítica, está ameaçado pela decisão do Supremo de fazer valer a Constituição (perda de mais de R$ 2 bilhões), e não por conta da falta de cobrança de devedores da Previdência (mais de R$ 60 bilhões). Sejamos sérios! Não cobrar dívidas de grandes caloteiros é uma forma de tê-los nas mãos, principalmente por ocasião de campanhas políticas turbinadas a marqueteiros.
              Recente pesquisa realizada em São Paulo com jovens motoristas mostra que a maioria absoluta é contrária a motoristas dirigirem embriagados. Ponto para os jovens? Não. A mesma pesquisa mostra que eles, individualmente, têm certeza que algumas cervejinhas não vão afetar seu desempenho ao volante. Ou seja, os outros não devem dirigir embriagados, eu posso, porque conheço meus limites, etc. e tal. Um motorista de táxi que peguei recentemente vociferava contra as mulheres que dirigem mal, enquanto fazia uma conversão proibida à esquerda, desrespeitava a faixa de pedestres (uma das poucas que não estava apagada), entrava no balão sem respeitar preferencial e parava sem dar seta. E é o Brasil que não tem jeito.
              Arriscaria dizer que os que sustentam esse discurso se incluem em duas categorias: os bobões, que não sabem do que estão falando, e os espertalhões, que sabem muito bem do que estão falando. Os primeiros,  pobres coitados manipulados pela mídia, incapazes de pensar com a própria cabeça, fazem parte do enorme contingente daquilo que eu chamaria de “lúmpen” intelectual, fruto de sabedoria televisiva bovinamente adquirida ao longo dos anos, misturada com ausência de leitura e com uma total incapacidade de estabelecer conexão entre os fatos. Os segundos, ao contrário, têm brilhante cabeça política, fruto de reflexão sólida ou de intuição privilegiada. Embora seu brilho intelectual não seja acompanhado de valores morais, procuram passar-se por arautos da ética, manipulando e escolhendo, habilmente, os bois de piranha a serem lançados na corrente e que lhes permitam uma passagem tranqüila e despercebida. Não se colocam contra devassas, desde que possam ter o controle delas para que o cheiro de esgoto não impregne seu hábitat, seja ele uma rica cobertura, uma habitação modesta na zona leste ou um palácio no Planalto Central. Sua candura é tão bem simulada que engana facilmente os “bobões”, acostumados ao fraco desempenho dos canastrões de novela.
              Para os primeiros, o Brasil nunca conseguirá ter jeito. Para os segundos, é importante que ele nunca tenha. Doses maciças de cidadania e mobilização talvez possam alertar os  “bobões” e neutralizar os “espertalhões”.