Chega de barulho!
Correio Braziliense


Pessoas que só conseguem comunicar-se aos gritos são profundamente irritantes. O grito é, por definição, impositivo e não argumentativo. Não exprime uma opinião sobre as coisas, mas a verdade única e definitiva, com a qual se pretende esmagar o interlocutor, visto quase sempre como adversário ou mesmo inimigo. Gritos não se prestam a expressar abstrações profundas, apenas a veicular sentimentos primários, pouco elaborados, recordando estágios menos avançados da humanidade, quando nossos ancestrais ainda não tinham criado formas mais evoluídas de linguagem e se comunicavam, como os animais, apenas por urros, guinchos, grunhidos e... gritos.
Aqueles que utilizam o grito como meio habitual de comunicação despertam sempre os piores sentimentos dos seus ouvintes involuntários, sejam os “gritões” pobres analfabetos enchendo a cara em botecos da periferia ou alcoólatras endinheirados em barezinhos elegantes, garotões funkeiros ou menininhas em danceterias. Pior ainda se forem políticos... Nossa cultura de sons exacerbados não passa, por paradoxal que pareça, de uma civilização do silêncio. Como as pessoas pouco ou nada têm a se dizer, criou-se, providencialmente, o fundo musical alto, ruído permanente no ar, que restringe a comunicação a meia dúzia de interjeições, seja nos barezinhos ou nos supermercados. Casais, com medo de revelar o vazio de sua solidão a dois, e até famílias, cujos membros não se comunicam, deixam a televisão ligada o dia inteiro, para com isso tentar preencher o espaço vazio entre as pessoas.
Há ainda a categoria dos ruidosos generosos, aqueles que fazem questão de dividir seus problemas, conquistas e fracassos, além de “descobertas” musicais, com todos. Nada como entrar num desses barezinhos de moda (cada cidade tem sua área, como o Savassi, em Belo Horizonte e a Vila Madalena, em São Paulo) e ouvir as conversas: à medida que o tempo passa e mais gente vai chegando, o teor alcoólico sobe (chamam a isso “beber socialmente”), as confissões ao pé do copo se tornam mais desavergonhadas e fazer a voz chegar até o interlocutor vai se tornando uma façanha ao alcance apenas daqueles com grande potência vocal.
               Ao diminuir os reflexos e a autocensura, a bebida transforma o conjunto de bebedores de cada barzinho numa espécie de unidade etílico-sonora própria, emissora de ruídos para centenas de vizinhos ao seu redor, ouvintes involuntários do banzé. O frege é reforçado por motoristas que instalam inacreditáveis parafernálias sonoras em seus automóveis e que passam distribuindo generosamente graves e agudos bem definidos por amplificadores e falantes e que divulgam seu mau gosto para todos.
Em algumas cidades menores (como Indaiatuba, no interior de São Paulo) a bagunça é reforçada por lojas que instalam inacreditáveis caixas acústicas nas calçadas, por sistemas sonoros instalados pela própria prefeitura em praças arborizadas (e que espantam os pobres pássaros, que, provavelmente, não agüentam a cafonice da programação) e até por caipiras em veículos (literalmente) sonoros rodando pela área central da cidade oferecendo bolachas, frutas, detergente e, é claro, a intragável pamonha de Piracicaba.
Em pleno século XXI, em nossa civilização urbana, muitos ainda não se deram conta de que a cidade é um espaço coletivo e heterogêneo. As pessoas vivem nas cidades por nela encontrarem trabalho, diversão, companhia e segurança (pelo menos em tese). A cidade é um centro de produtos e serviços, os mais diversos. Por sua complexidade, os horários na cidade não são os mesmos para todos. Uns acordam e vão dormir cedo, outros tarde, outros dormem durante parte do dia para trabalhar à noite e assim por diante. Assim, um espaço que é de trabalho para alguns é, naquele mesmo momento, de descanso, para outros. Próximo de alguém que se diverte encontra-se outro que repousa. Na verdade o próprio conceito de diversão é diferente para distintos cidadãos: uns acham o supra-sumo do lazer compartilhar um churrasco acompanhado de cerveja e música. Outros preferem uma leitura silenciosa acompanhada de música. E mesmo nesse setor, as opções são muitas: há os pagodeiros, os roqueiros, os axesistas, os bolereiros, os caetanófilos, os chicólogos, os chitão-xorosistas, os operólatras e até os bethovenianos.
Não há, é claro, certos e errados. O importante é todos terem o direito de ouvir sua música. Isso faz parte do direito de escolha, que uma sociedade democrática precisa garantir aos cidadãos. O que não dá, o que não pode, é alguns quererem impor seu gosto aos demais. Imagine-se a loucura que seria a prefeitura fazer aprovar uma lei que obrigasse todos os moradores de Brasília ou de São Paulo a ouvir duas óperas completas por dia em italiano, francês e mesmo em alemão... Que haja um bom teatro na cidade, que nele encene-se, vez ou outra uma ópera, que as pessoas tenham a possibilidade de conhecer tal forma de novela musical, tudo bem. Mas obrigar o povo a suportar contra sua vontade duas óperas ao dia... tenham a santa paciência.
Contudo, é algo equivalente a isso que acontece diariamente em quase todas as cidades do país, por meio de todas as situações e instrumentos de tortura já descritos. Ia me esquecendo, um capítulo especial deveria ser dedicado aos “queridos vizinhos” (felizmente, não os meus) que adoram exibir, despudoradamente, a potência de seus aparelhos sonoros.
Há poucos anos, um país da Europa fez uma campanha nacional para que as pessoas falassem em voz normal umas com as outras e não mais gritassem. O resultado foi uma aparência mais civilizada e menos stress para todos. Não se trata, é claro, de nos transformarmos da noite para o dia em escandinavos (ou na representação que fazemos deles). Trata-se de um problema real que, afora algumas poucas e exemplares prefeituras, não tem sido tratado a sério pelos governos e pela sociedade.