Um lar para os palestinos
Revista Veja


Meus pais nasceram na Europa oriental e vieram para o Brasil ainda pequenos, fugindo dos pogroms contra os judeus e da miséria que afligia as famílias camponesas no Velho Mundo. Minha infância foi povoada pelos fantasmas do holocausto nazista, pela destruição do judaísmo europeu como cultura, pelas notícias de parentes assassinados pelos alemães nas câmaras de gás. Nasci em Sorocaba, e morava a poucos metros das oficinas da então Estrada de Ferro Sorocabana. As palavras pogrom e anti-semitismo, repetidas no belo iídiche em que meus pais liam em voz alta trechos dos grandes escritores judeus, faziam parte do meu cotidiano, da minha existência. Eu degustava as palavras e dava um significado mais amplo ao seu conteúdo. Lembro-me de uma cena assustadora a que assisti certa vez no pátio das oficinas de Sorocabana: policiais a cavalo investiram brutalmente contra um grupo de operários em greve. Era a primeira vez que testemunhava a violência institucional. Corri para casa e só depois de um copo de água com açúcar consegui explicar aos meus pais que acabara de testemunhar um pogrom.
            Pela mesma razão que me insurjo contra manifestações anti-semistas de qualquer cunho, em qualquer tempo ou lugar, não posso aceitar preconceito racial de qualquer tipo ou esmagamento de direitos, seja do cidadão, seja da nação. Por isso defendo o direito dos palestinos a um pedaço de terra que possam chamar de lar. Pró-palestino não quer dizer anti-israelense, nem pró-israelense quer dizer anti-palestino. Apesar do acirramento das tensões com a Guerra do Golfo, setores menos radicais e mais esclarecidos dos dois lados começam a perceber que é impossível a existência de Israel sem uma convivência, se não amistosa, pelo menos cordial com seus vizinhos. Percebem também que a radicalização dos discursos árabes, falando em “jogar ao mar todos os judeus”, é de um primarismo político que não leva a nada.
            Claro que há muita emoção em jogo, tanto para os judeus quanto para os palestinos. Há setores do governo israelenses que identificam os palestinos como terroristas, o que é uma inverdade grosseira e um ato de pura manipulação política. Israel também sofre de uma compreensível síndrome de insegurança e de desconfiança, provocada tanto pelos massacres de judeus durante a II Guerra Mundial quanto pela própria situação de Israel, cercada por inimigos. Aos que pensam assim costumo dizer que, em vez de repelir e invadir para conseguir mais segurança, a solução poderia ser transformar inimigos em amigos.
            É possível fazê-lo. Afinal, se franceses e alemães, após séculos de desavenças e confrontos, rezam pela mesma cartilha européia, não vejo razão para que isso não aconteça entre palestinos e israelenses. Árabes e judeus, ao contrário do que se afirma levianamente, têm um passado de maior colaboração e tolerância do que de inimizade e guerra. De resto, não há conflitos entre árabes e judeus. A tensão é entre um Estado nacional estabelecido (Israel) e um grupo nacional que quer se estabelecer como Estado (os palestinos). Árabes e judeus no mundo inteiro, inclusive no Brasil, convivem em perfeita harmonia - e isso também é verdade nos diferentes períodos históricos em que os dois povos interagiam, como, por exemplo, a época em que os muçulmanos dominaram a Península Ibérica. Um testemunho dessa convivência amigável é a antiga sinagoga da Passagem, em Toledo, Espanha, um monumento em estilo mourisco com inscrições em hebraico e árabe. Com o fim da presença muçulmana, a sinagoga foi transformada em igreja católica pelos reis da Espanha.
            Resta discutir uma questão dupla: seriam os israelenses uma nação? Com uma população oriunda de lugares tão diferentes quanto a Rússia, os Estados Unidos, Marrocos ou o Iêmen? E os palestinos, seriam uma nação ou apenas fariam parte de uma nação maior, a árabe, não tendo portanto identidade própria? Essa é uma questão acadêmica, no pior sentido da palavra. Uma nação é simplesmente um povo com consciência de sê-lo. Dessa forma, não cabe aos israelenses definir se os palestinos são ou não uma nação, como não cabe a ninguém (nem aos palestinos) achar que os israelenses poderiam viver perfeitamente num Estado binacional e laico. Uns e outros são uma nação, querem uma base territorial, portanto devem ter seu Estado nacional.

            Está na hora de esquecer os rancores, sentar em volta de uma mesa e negociar. Não me cabe, como brasileiro, opinar sobre a melhor maneira de fazê-lo, mas estou convicto de que israelenses e palestinos têm muito mais elementos de união do que de desunião. Afinal, embora o exílio seja ruim e doloroso, ele rompe os limites estreitos do nacionalismo chauvinista e permite enxergar o mundo além do próprio umbigo. Israelenses e palestinos sabem muito bem o que é ser marginalizado, sabem o que é lutar por um lar nacional. Os árabes devem reconhecer de vez o Estado de Israel. E os israelenses devem respeitar a autodeterminação palestina. Chegou a hora da paz



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