Bem-vindos ao planeta Terra
O Estado de S. Paulo


O Fórum de Pinheiros, em São Paulo, foi construído numa região elevada e aprazível da Vila Madalena. É um edifício de aparência sólida e elegante, levantado junto a uma praça com muito verde e cercado de residências confortáveis, edifícios de classe média alta e uma pequena malha de serviços. Quem passa por perto não pode deixar de observar o grande número de juízes, promotores e advogados que para ele se dirigem. Olhando de fora, fica a impressão de que a Justiça tem, a depender do prédio, condições de se fazer ouvir e cumprir.
Enquanto no seu interior se luta para que as leis sejam cumpridas, do lado de fora ela é totalmente ignorada. A calçada que circunda o Fórum, cimentada de forma irregular e arrebentada em muitos trechos, dificulta enormemente a livre circulação de pedestres. Antes que alguém argumente que isso nada tem que ver com a Justiça, que é coisa de outra instância, lembraria que uma calçada em mau estado impede que alguns preceitos constitucionais sejam cumpridos: além de ferir o direito de ir e vir livremente, impede que idosos, portadores de deficiências, bebês em seus carrinhos e outros cidadãos possam por ela transitar, o que contraria o preceito de que todos são iguais perante a lei. Guaritas, bancas de revistas e cadeiras de um bar espalhadas pela calçada, e até pela rua, privatizam, irregularmente, o espaço público. Um ponto de ônibus, bem à sua frente, está permanentemente obstruído por automóveis de visitantes do Fórum, obrigando o coletivo a parar no meio da rua para recolher seus passageiros. Esquinas também são tomadas por carros estacionados, sem que o recuo obrigatório de cinco metros seja respeitado e sem que o pedestre tenha por onde atravessar a rua.
Há mais: muitas garagens são construídas de modo a facilitar ao máximo a entrada dos veículos e dificultar, também ao máximo, o tráfico de pedestres, criando degraus intransponíveis. Parece que também aqui vigora a idéia de que o pobre deve pagar pelo pecado original de ter nascido sem talento para ganhar dinheiro. Bares são abertos em ruas em que o zoneamento municipal proíbe tal atividade e infernizam a vizinhança com o volume das conversas que, sabidamente, crescem à medida que sobe o teor do álcool no sangue de seus boêmios freqüentadores. Ninguém inibe os bares irregulares (agora, nem os fiscais da prefeitura, que costumavam tirar suas casquinhas...), ninguém verifica o teor de álcool no sangue dos beberrões motorizados. Ninguém tira os carros estacionados no ponto de ônibus. Ninguém remove as cadeiras ocupando as calçadas nem os cones reservando pedaços do asfalto. Ninguém conserta as calçadas quebradas, que quebraram o orgulho do paulistano, obrigando-o a andar olhando para o chão. Isso é justo?
Entretanto, no alto, dominando o espaço como se fora um castelo medieval, paira o Fórum. Objeto estranho na paisagem, embora construído do mesmo material que os edifícios próximos, não se integra. Em vez de conviver, age como se apenas espiasse à sua volta, visse o descalabro e, desinteressado, se voltasse para dentro. É como se a virtualidade dos papéis bastasse para sua sede de justiça, e ela não precisasse ser exercida à sua volta, na realidade. Os passantes e moradores se perguntam como podem os homens da lei passar sem ver, ou ver sem agir, eles que têm poder para tanto. Ou nem mais se perguntam, acostumados a ver nos edifícios públicos, em vez de espaços do cidadão, manifestações concretas do poder. Sabem que, se perguntarem por que as coisas são assim, ouvirão que “assim são as coisas”, cada um deve ficar na sua, algumas coisas são responsabilidade da prefeitura, outras do Detran, outras da polícia, e assim por diante, dentro da nossa melhor tradição “se burocratizarmos, eles acabam desistindo”.
A questão não é, está claro, o Fórum de Pinheiros, apanhado aqui como “boi de piranha”. No Brasil, país onde a divisão social passa pela separação, em castas, de pedestres e motorizados, estes passam pelas ruas e não vêm – ou tentam não ver – nada. Além disso, aqui existe um estranho divórcio entre Estado e sociedade. Divórcio, eu disse? Não, não há divórcio onde nunca houve casamento. O Estado brasileiro, surgido a partir de uma quase doação de pai para filho em 1822, nunca se dignou a dirigir seu olhar para a sociedade. Ele, que deveria ser o instrumento jurídico dela, é quase autônomo, posa de auto-suficiente, embora quem lhe dê legitimidade e lhe pague as contas seja ela, ou seja, nós. Usando de histórica arrogância (de que o discurso de despedida de Gustavo Franco do Banco Central é apenas um exemplo modelar) nossas elites, dentro ou fora do governo, acabaram moldando um povo que encontra na dissimulação (simpaticamente rebatizada de “jeitinho”) sua estratégia de sobrevivência. Arrogância e dissimulação não são, com certeza, boa matéria-prima para forjar a nacionalidade...
Solução? Há sim. E quem nos mostra o caminho é, primeiramente, a dona da academia que comprometeu os fiscais da prefeitura, expondo o fio da meada da corrupção, pois, como todos sabemos, não há corruptos sem corruptores e só pagamos se temos culpa em cartório. Em seguida, mostram-nos o caminho o procurador-geral do Estado, dr. Marrey, e sua equipe de promotores – surpreendentemente jovens e decididos –, que parecem estar fazendo a Justiça descer da torre onde habitou por tanto tempo.
Bem-vindos ao planeta Terra.