À margem da lei
Folha de S. Paulo


A descoberta de uma quadrilha de bandidos travestidos de fiscais na Administração Regional de Pinheiros, bairro da zona sudoeste de São Paulo, não deve ter surpreendido ninguém. Qualquer pessoa que tenha precisado podar uma árvore ameaçadora, retirar entulho, fazer uma pequena reforma ou algo do gênero nessa região já terá experimentado o peso da burocracia organizada para criar dificuldades com o objetivo de vender facilidades.
Era corrente a idéia de que não adiantava reclamar de bares ruidosos, restaurantes funcionando em locais impróprios ou construções irregulares. O alerta dos cidadãos só ajudava os fiscais a localizar novas fontes de renda para si mesmos. E o interesse da cidade? Ora, o interesse da cidade... Não espanta a existência da quadrilha, mas a tranqüilidade com que funcionava, com o beneplácito do Executivo e do Legislativo, o apoio de maus cidadãos (sim, pois não há corruptos sem corruptores) e a conivência da população, que via a região se deteriorando e achava que as coisas eram “assim mesmo”.
Os fatos são graves, muito graves mesmo. A ocupação indiscriminada do solo e sua impermeabilização, com vistas apenas a interesses comerciais imediatos, implicam a destruição da já rara área verde que a região possui, com graves conseqüências sobre a vida urbana, como o transbordamento dos córregos (já que a água não tem como se infiltrar no solo) e a piora do trânsito e de nossa já não tão excepcional qualidade de vida. A abertura de barzinhos em locais proibidos prejudica o sono e a segurança da vizinhança, levando para áreas residenciais boêmios e arruaceiros, além de ocupar calçadas e até partes da rua com cones, filas duplas e tudo o mais. Ingênuos os que achavam que a prefeitura, por ter poucos fiscais, não tinha como atacar o problema. Ele era atacado, mas em proveito de gangues organizadas exatamente por quem deveria lutar contra irregularidades.
Mas há um aspecto que talvez seja o mais grave: o fracasso do Estado exatamente numa das áreas em que sua atuação é insubstituível. Na verdade, a corrupção faz com que os agentes do governo (no caso, os fiscais), que deveriam ter por função apenas executar as leis (supostamente inspiradas pelo povo e criadas pelo Legislativo), tomem a si o direito de criar seus próprios regulamentos, aplicá-los e tirar proveito pessoal dessa aplicação. É como se houvesse uma lei “para inglês ver” e outra para valer. É só perguntar às centenas de comerciantes que pagavam propina qual poder eles respeitavam.
Infelizmente, o caso dos fiscais não é isolado. Arrancar recibo de certos dentistas e médicos é quase tão difícil quanto receber uma nota fiscal de muitas lojas. Máquinas registradoras que não emitem cupons fiscais, só boletos de “controle interno”, são comuns, e é freqüente o pedido de uma nota fiscal ser recebido com expressão de ódio mortal por parte do comerciante. Esse sentimento de impunidade só pode se escudar numa (digamos assim) colaboração estreita com aqueles que teriam por função fazer cumprir a lei.
Isso vale, é claro, para “colaborações” em esferas mais elevadas. Não consigo achar que seja menos do que um escândalo a apropriação indébita do INSS do empregado, descontado da folha de pagamento e não recolhido pelo empregador. Vez por outra saem listas dos maiores devedores, muitos dos quais empresas da área de comunicação, e não posso deixar de imaginar qual seria a contrapartida exigida pelos “bondosos” governantes pelo perdão informal das dívidas. É, mais uma vez, o funcionário de governo extrapolando suas funções, corporificando todos os poderes, arrogando-se poderes imperiais, como se a Revolução Francesa não tivesse existido para nada.
De resto, ainda somos um país que tem leis escritas que “não pegam” e leis não-escritas que já pegaram. Legislar para o nada é inócuo, na melhor das hipóteses. E, na prática, sempre há algum agente fazendo algum tipo de lei funcionar. Bom exemplo é o de estupradores (ou supostos estupradores) encarcerados. Por mais desprezo que se possa sentir por eles, não é aceitável que sejam postos numa cela com a recomendação dos carcereiros para que sejam sodomizados pelos companheiros, como punição pelo seu ato. Aqui, temos carcereiros julgando e condenados executando a lei. Ora, sejamos sérios. Ou os legisladores assumem que somos trogloditas e colocam a sodomização como pena para o estupro ou façamos cumprir a lei. Para todos.