A arte de deixar tudo como está
Correio Braziliense


Há poucos dias foi realizada a festa da entrega dos Oscar, em Holywood, e a mídia fez o que pôde para nos colocar diante da televisão torcendo pela vitória do filme Cidade de Deus, indicado em quatro categorias. Melhor do que as reportagens ufanistas eram as colunas das cartas dos leitores de jornais, antes e depois da premiação. Grosso modo elas se dividiam em duas posições opostas: alguns, tendo visto ou não o filme, desejavam que “o Brasil” vencesse mais esta batalha, que mostrasse ao mundo nosso talento e nossa técnica. Outros protestavam, veementemente, contra o filme que, segundo eles, mostrava aspectos desagradáveis para os gringos, constituindo-se, portanto, em antipropaganda, com prováveis implicações na captação de turistas, notadamente para o Rio de Janeiro.

Acho que, por trás da discussão, é possível perceber uma prática cotidiana, assim como uma herança histórica, ambas bastante características, embora não exclusivas do nosso país, razão pela qual vale a pena discutirmos um pouco o assunto. A prática cotidiana é o insalubre, porém difundido, hábito de jogar o lixo para debaixo do tapete: “o que é feio não se mostra, se alguma violência existe, ela deve ser escondida”. A muitos não importa se, de fato a violência existe, importa é não exibi-la. São os defensores de que forma é mais importante do que conteúdo, que o adjetivo é que precisa ser escolhido, não o substantivo. Esta prática pertence à mesma vertente dos que, chegando muito atrasados, ainda acham ruim a maneira que o interlocutor usou para se queixar do seu atraso.

Por outro lado, não deixa de ser curioso que nosso cinema se debruce com tanta intensidade sobre problemas distantes da realidade dos produtores e diretores, filhos diletos da classe média urbana. Enquanto na Argentina jovens cineastas realizam obras de alcance universal, a partir do universo urbano, os nossos voltam-se para o pitoresco, para a periferia, para a marginalidade. Não que carandirus e periferias violentas não mereçam ser temas de filmes, longe disso. Mas não deixa de ser estranho relegarmos às telenovelas, veículo sabidamente superficial e esquemático, o monopólio de lidar com os dramas urbanos da classe média em processo de pauperização, enquanto na Argentina eles são objeto de filmes brilhantes, com os quais, freqüentemente, nos identificamos mais do que com as nossas películas, que folclorizam a cultura regional e embalam nossa violência, em câmara lenta e ângulos apropriados para a exportação.

Não, prezado leitor, não vou criticar o cinema nacional. Pelo contrário, por mais que inconfessadas intenções comerciais, transvertidas de estilo neo-Tarantino, possam ter orientado esses filmes, o fato é que eles são manifestações de certa consciência culpada que, com justiça, carregamos. Na verdade, este é um país que exclui e segrega. A escola pública, desde que ficou ao alcance de (quase) todos, perdeu em qualidade. O mesmo pode se dizer dos serviços de saúde, no país inteiro, e de água e esgoto em grande parte dele. Em apenas poucos lugares se estimula o acesso aos bens culturais da humanidade a toda a população, imaginando-se que apreciar um bom teatro, cinema fora do esquema terror-ficçãocientifica-desenho-comédiasxarope, música de qualidade ou artes plásticas seja privilégio de endinheirados. Ao não permitirmos que enorme parcela da população tenha acesso ao patrimônio cultural da humanidade, aprimorando o seu gosto, estamos condenando muitos cidadãos a consumir produtos de segunda linha da indústria cultural, tornando-os presa fácil dos programas idiotizantes de televisão, da música brega, da aversão aos livros.

O fato é que a sociedade e o estado brasileiros têm se unido, com sucesso, para, ao longo de toda nossa história, manter enorme fatia da população como cidadãos de segunda classe, não só ao não propiciar o trabalho bem remunerado (atualmente, nem mal remunerado), o direito à habitação, a três refeições por dia; tivemos sucesso também em marginalizar e excluir esses cidadãos dos bens culturais (que, insisto sempre, são os que fazem com que o ser humano se diferencie dos demais animais). Daí purgarmos nossa culpa, em ondas como a do Cinema Novo (sobre o povo, mas para poucos), ou como a do cinema atual (a estética da miséria e da violência do Brasil para o mundo). Ambas fruto de culpa. Ambas tão conseqüentes quanto as músicas de Geraldo Vandré. A gente ouve, a gente se emociona com a nossa própria emoção, a gente vai para casa e dome seguro em nosso prédio devidamente gradeado. E para os que foram objeto de nossas “obras de arte”? Esses que continuem como estão por mais quinhentos anos.