Um choque educacional para o Brasil
Folha de S. Paulo


              Não que a globalização seja algo inteiramente novo na História: no limite ela não passa de uma exasperação de um processo de muitos séculos, ao qual o Brasil esteve ligado desde o Descobrimento. O comércio triangular que envolvia Europa, África e América, no período em que éramos colônia de Portugal, já não era propriamente uma atividade provinciana... O que sim a globalização tem de novo é a redefinição do papel dos Estados nacionais, um incremento formidável do setor de serviços, uma tecnologia permanentemente renovada de âmbito mundial, uma enorme fluidez de capitais (que há um século e meio Marx já sabia não ter pátria) e a superação da força de trabalho desqualificada. Será que o Brasil está de fato preparado para a globalização?
             É razoavelmente consensual a idéia de que o Estado empresário não está tendo mais espaço: não é mais sua função gerir empresas, funcionar como cabide de empregos, pagar salários incoerentes para uma minoria de funcionários à custa da maioria da população. Isso quer dizer que o Estado deve ser mínimo, deixando que o velho liberalismo renasça das cinzas e substitua todas as funções antes atribuídas à administração pública? É evidente que não. Há, em certos setores, uma contradição irremovível entre a necessidade do lucro, que impulsiona o empresário e a necessidade de atendimento da maioria da população. Não é por outra razão que a defesa do consumidor, o combate aos monopólios privados, o direito à arbitragem nas relações empresas/cidadãos têm sido uma grande preocupação dos Estados nacionais de capitalismo mais avançado. As pessoas são diferentes, sim, mas não podem partir de patamares muito distintos. Uma nação moderna só se viabiliza quando todos têm direito à cidadania e ao Estado cabe, dentro do possível, fazer com que todos os cidadãos tenham as mesmas oportunidades.
            Teríamos que pensar se estamos dando conta de suprir as necessidades básicas de todos os brasileiros e, mais que isto, se estamos organizados ou estamos nos organizando para as profundas transformações que a globalização carrega, queiramos ou não. Que a resposta ao primeiro item é negativa não há dúvida alguma: basta lembrar que somos um dos países socialmente mais injustos do mundo em distribuição de renda, algo, aliás, já denunciado por vários dos nossos principais dirigentes, entre os quais os ministros da educação e da cultura e o próprio presidente da República. Não se pode, é claro, cometer a leviandade de responsabilizar o atual governo por uma situação que se mantém há séculos, mas se pode e se deve cobrar uma ação mais efetiva em alguns setores, como, por exemplo, na educação.
            Logo a educação, dirá o atento leitor, a educação onde tanta coisa está sendo feita? Sim, a educação. Exatamente por ser um dos ministérios mais operantes do atual governo, por ter nos seus quadros educadores de primeira linha, por ter imprimido dinamismo e credibilidade às suas ações, por lutar por um livro didático de qualidade e por parâmetros curriculares adequados às escolas do país inteiro é que ele pode ser cobrado. Afinal, bons currículos e bons livros não podem ser acionados à distância, ou por computadores. Necessitam de professores bem preparados, atualizados e com suas leituras em dia. E nesse aspecto o ministério tem cometido o pecado da timidez.
             A formação dos nossos professores é deficiente. E nem estamos falando apenas dos leigos, ou dos que não têm curso superior, ou dos formados em cursinhos de final de semana que ainda proliferam sob vários disfarces. Mesmo na maioria das faculdades razoáveis, a questão do ensino é relegada a um plano secundário e as matérias pedagógicas dos cursos de licenciatura são apenas toleradas pelos demais departamentos. Jogados diante dos alunos da rede pública, muitos professores são incapazes de operacionalizar conceitos básicos de suas áreas de conhecimento, não conseguem construir um conhecimento junto com o aluno e logo entram no rameirão do conhecimento pronto e acabado. Utilizando o livro didático não como elemento componente do seu arsenal pedagógico, mas como bengala para as suas deficiências, um grande número de professores estuda no material que deveria utilizar para ensinar. Muitas vezes um livro didático é o único daquela disciplina que tanto alunos como professor consultaram.
            Alguns estados, como Minas Gerais e São Paulo, desenvolveram importantes programas de capacitação de professores que incluem acesso a bibliotecas e cursos. Mas, por significativos que sejam, são fatos esporádicos, que sozinhos não têm como reverter nossas imensas carências, que, vergonhosamente, não nos colocam bem classificados sequer entre as demais nações latino-americanas.
            É estranho que este governo, tão radical no “choque de capitalismo” que infligiu ao país, não tenha pensado num “choque educacional” do mesmo porte. Um povo de analfabetos, semi-alfabetizados, ou pessoas despreparadas para enfrentar criticamente a massa de informações que já está chegando do mundo inteiro (via TV, internet, Cd roms, dvds e outras parafernálias) não terá como ser um povo livre, criativo e com personalidade própria. Será sempre um consumidor de software produzido em outros lugares e uma mão de obra reserva para ser ativada quando e se for necessária. Ora, como formar cidadãos brasileiros no mundo que aí está com o ensino brasileiro na condição em que se encontra?
            Nossa única chance é ousar. Interromper durante um semestre, ou mesmo um ano, os cursos de graduação e pós-graduação de todas as faculdades do país nas áreas ligadas ao ensino fundamental e organizar, sob a orientação do ministério de educação, um curso enérgico de capacitação de todos os professores brasileiros do ensino fundamental, de norte ao sul do país. Professores universitários e muitos de seus alunos, devidamente credenciados para este fim, se deslocariam para cidades que funcionariam como centros de ensino. O país ficaria de pernas para o ar durante um ano, ao fim do qual teríamos um quadro docente bem mais capacitado. É claro que o programa teria que ser permanente, exigindo acompanhamento cuidadoso, a formação de bibliotecas escolares para alunos e professores, uma política coerente de salários e benefícios e por aí afora.
            O fato é que não podemos mais perder o bonde da história, e se não nos sobrar ousadia, não passaremos de reles limpa-trilhos de um comboio que nos deixou para trás.