A morte pode ser um passo necessário
para eternizar alguém como santo, mas “quase morrer” é o caminho mais seguro
para se tornar herói. Os exemplos são
numerosos e começam milhares de anos atrás. É só deixar o ceticismo de lado e
aceitar textos religiosos como verdades estabelecidas. Querem ver?
Vejam o caso de Moisés.
Conta-se que ele nasceu em lar judaico, teve sua vida ameaçada, foi colocado em
um cesto e largado na correnteza do rio, foi levado pelas águas e salvo por uma
serva da princesa do Egito, e acabou sendo criado como filho do faraó. Dizem
também que, ao dar-se conta de sua origem, preferiu ser fiel a seu povo,
abrindo mão dos privilégios que teria na terra das pirâmides. Liderou seu povo
contra o próprio faraó, peregrinou pelo deserto por quarenta anos, recebeu as
tábuas da lei, morreu ao avistar a Terra Prometida. É considerado o fundador do
judaísmo, o maior dos judeus e um grande profeta, tanto para cristãos, quanto
para muçulmanos.
Quem se der ao trabalho de
consultar os mitos de origem mesopotâmicos (região que fica entre o Tigre e o
Eufrates, mais ou menos no atual Iraque) vai encontrar várias histórias
semelhantes, como a de Sargão, rei de Agade, cuja mãe “me colocou numa cesta de junco, com betume, ela selou milha
tampa, ela me jogou no rio que não me cobriu, o rio me conduziu e me levou até Akki, o
tirador de água...”, etc. A lenda de Rômulo e Remo também inclui o risco de
vida para os gêmeos fundadores de Roma. Quando recém-nascidos, foram colocados
no Tibre, como podemos ler em narrativa um tanto irônica de Tito Lívio. A
infância cheia de riscos atinge até a figura de Jesus, que é carregado por sua
mãe e por José em sua fuga, segundo nos é narrado nos catecismos. O fato de ter
conseguido se salvar, milagrosamente, de morte provável, quase certa, pretende
indicar a ligação que o herói tem com a divindade, a estreita relação que o mito
tem com seu deus. A ideia de quem escreveu é mostrar que, desde criança, ele
tinha sido escolhido, o que significa que já era diferente dos demais,
especial, selecionado para viver e ser o responsável por grandes feitos.
O herói que correu risco de
vida é um clássico. Além da literatura religiosa, ele frequenta as sagas de
diferentes povos, dos escandinavos aos indígenas americanos. Pode ser
encontrado até nos antigos seriados americanos. Quem não conhece super-heróis,
super-homens que,
antes de mostrar a que vieram, quase perderem a vida, prematuramente? São seres
que superaram adversidades, não qualquer adversidade, mas ameaças graves, ódio
de gente poderosa que, mesmo dispondo de enorme arsenal, não conseguem abater o
herói, uma vez que ele é o protegido dos deuses (ou de um deus só, aí depende
da religião). Mas nas narrativas, para
ser mito, o futuro herói deve preencher outros quesitos. O principal deles, na
definição do meu neto, é que ele precisa ser “do bem”. Mesmo sendo primário, grosseiro, vingativo, violento,
até cruel, se é mocinho, é “do bem”. Em faroestes clássicos era aquele que montava
cavalos claros, usava roupas claras. Nas antigas matinês do Cine Lider, em Sorocaba, qualquer criança (eu também, é claro)
distinguia assim entre o escolhido dos deuses e os bandidos. Estes eram vaiados inapelavelmente
desde sua primeira aparição, enquanto os
heróis eram ovacionados. Eles escapavam
de todos os perigos, porque eram os mitos, os mocinhos.
O herói sofreu um atentado?
Ele é forte, vai se recuperar. Pegou a doença que apavora o mundo e já matou
mais de um milhão de pessoas? Ele tem a benção dos deuses, vai dar dois
espirros e dar o assunto por encerrado. Máscara é coisa de fracos... Dinheiro
estranho tem aparecido em conta de familiares? “Ora, ora, quem foi o bandido
que fez esse depósito, só para tentar envolver um homem tão reto”? A Amazônia e
o Pantanal estão queimando? “Esses
índios não deixarão nenhuma árvore em pé”.
Sem entender de política
internacional, nosso herói nos defende na ONU. Sem falar uma palavra de inglês,
tornou-se o melhor amigo do presidente americano. O mundo mais uma vez se
curvou diante do Brasil. O mito driblou a morte, está firme e forte no seu
posto para nos defender de todos os perigos.
Como os ingênuos meninos do
Cine Lider, tem gente que aplaude: “É o mito, o
favorito dos deuses”.
O mesmo neto inteligente
mais uma vez se manifesta: “só que não, vovô, só que não”.