O
QUE É SER NEGRO?
Quando
Simone de Beauvoir afirmou que a mulher é fruto da sociedade, não da biologia,
ela escancarou uma porta que, uma vez atravessada, ajuda a entender e explicar
atitudes preconceituosas e discriminatórias. Claro que a pensadora francesa
sabia que as pessoas nascem com uma determinada aparência, de homem, ou de
mulher. O que ela afirmava com a frase seminal é que a compreensão social do
que é uma mulher não tem a ver com sua conformação física, mas com a imagem de
mulher que a sociedade elaborou sobre o que é ser mulher. Por essa razão
diferentes sociedades elaboram imagens diferentes do que é ser mulher.
Diferentes grupos sociais, dentro de uma mesma sociedade nacional elaboram
imagens diferentes. Nós elaboramos imagens diferentes para mulheres de
diferentes grupos sociais.
Para
facilitar o argumento e não entrar em polemicas desnecessárias, exemplificarei com uma situação em processo de extinção,
mas que foi muito marcante em nossa sociedade e, infelizmente, ainda tem
resíduos em rincões geográficos e culturais. Não faz muito tempo ainda se
falava de mulheres para casar como uma categoria diferente da de mulheres
para sair. Era comum o noivo preocupar-se com a manutenção da virgindade de
sua namorada, devolve-la à casa dos pais depois de levá-la ao cinema e ir
buscar a outra, aquela com quem não iria se casar, com quem podia fazer de
tudo. Ou, simplesmente, dar uma passadinha no prostíbulo e pagar por
isso. As características biológicas das
diferentes mulheres (a noiva, a outra, a prostituta) eram semelhantes, mas o
papel social de cada uma era diferente do da outra. Assim,
a mulher não nasce mulher, mas é criada pela sociedade.
Assim,
o negro. A raça negra, biologicamente falando, não existe. Existe, sim, uma
raça humana. Existe o homo sapiens. Então seria errado falar em raça negra? Ora,
se ela tem existência social, histórica, ela existe. Afinal, vivemos em
sociedade e a percepção social é definidora das relações sociais. Claro que
isso provoca alguns problemas de ordem científica. Quanto de melanina na pele é
necessário para definir a negritude de alguém? Brasileiros se espantam ao ver african-americans
nos EUA que aqui seriam considerados brancos. A tal gota de sangue,
definidora da raça naquele país, aqui não é. No Brasil, o sucesso social pode
amenizar a quantidade de melanina. E a pobreza, com frequência, aumenta.
Claro
que a maior parte dos estereótipos atribuídos ao negro são
resquícios daqueles estabelecidos durante os longos séculos em que o mundo
ocidental adquiria escravos, frequentemente capturados na África e os
escravizava, tratando-os como mercadoria e força de trabalho, não como gente. Daí
a ideia de que negros são preguiçosos, ironia terrível, para quem era obrigado
a trabalhar até não ter mais forças. Daí a concepção de que levam jeito apenas
para a música e a dança, já que estas eram das poucas diversões a que tinham quando
escravizados. Daí o estereótipo de que são mais eróticos, tanto os homens (que
eram vistos com pouca roupa e desenvolviam musculosos por conta do trabalho no
eito), quanto as mulheres (usadas como objetos
sexuais, seja pela violência, seja com promessas de vantagens, ou até com acenos
de liberdade para um possível filho concebido).
É
fundamental lembrar: negros não escolheram serem escravos; negros não pediram
para vir para as Américas. Sua pele mais escura seria apenas uma pele mais
escura (como temos cabeças redondas ou ovais, lóbulos de orelha presa ou solta,
altura e peso variado), não fosse o fato de a melanina ter sido identificada
como diferença qualitativa, não simples variação, como tantas outras. Assim, quando
os escravos conquistaram liberdade formal continuaram carregando uma imagem socialmente
determinada, vinculada a uma suposta aparência diferente.
Discriminar
as pessoas por terem a pele mais clara ou escura não tem respaldo em qualquer
evidência científica e olha que dirigentes e cientistas racistas tentaram
intensamente estabelecer vínculos entre desempenho intelectual e diferencias
cromáticas da epiderme, sem conseguir. Já é mais do que hora de sociedades como
a americana desmontarem estruturas carregadas de preconceito, como seu sistema
de justiça, a partir das organizações policiais. Episódios como o assassinato
de um cidadão por alguém que deveria, no máximo, deter um suspeito, mas se
permitiu ser também promotor, juiz e carrasco, são simplesmente inadmissíveis. Também
nós, no Brasil, devemos fazer uma cuidadosa autocrítica e verificar se nossas
atitudes e nossas práticas sociais não estão carregadas de preconceito e
discriminação, fatores determinantes na criação de guetos sociais e raciais.
Crescimento
econômico e alto nível tecnológico são essenciais, todos estão de acordo. Mas
não serão suficientes para construir um país democrático. Entre outras medidas,
seria necessário desenvolvermos uma escola pública universal e de qualidade.
Oportunidades iguais formarão uma sociedade mais justa. E escola precisa e pode
ser um fator positivo, dando chances equivalentes a todos, pobres e ricos,
negros e brancos.