A pandemia de Coronavírus me
transformou em animal doméstico. Na divisão de tarefas estabelecida fiquei com
a cozinha. Nenhum problema, sempre gostei de cozinhar. E nunca imaginei
alcançar a independência que tenho para determinar cardápios, abusar de
ingredientes e até usar as panelas que desejo. Confesso, cá entre nós, ter sido
contaminado por certo orgulho, talvez até vaidade. São os efeitos secundários da
epidemia...
Mas a vida não é apenas
flores. Cansada de peixes e massas, minha mulher fez uma solicitação
aparentemente frugal. Queria comer feijão com arroz. Tinha vontade de um feijão
que, paradoxalmente, nunca comera, mas do qual eu falava muito, o da minha mãe:
bem temperado, macio, caldo grosso. Um feijão que frequentava minha memória e a
imaginação dela. Tudo bem. Eu me dispus a fazê-lo. O único detalhe é que, de
repente, me dei conta de que nunca havia cozinhado feijão.
Na casa dos meus pais, em
Sorocaba, havia feijão com arroz, quase todos os dias. A exceção era nos finais
de semana, aos sábados, um prático arroz de forno e aos domingos um eclético macarrão
com frango. Como meus pais pertenciam a famílias judaicas da Europa Oriental, eu
me perguntava como é que nossas refeições tinham um perfil tão brasileiro. Recuperando
os passos percorridos pelo casal, encontro a resposta. Chegando ao Brasil perto
de 1930, as famílias (que não se conheciam na Europa) foram viver no norte do
Rio Grande do Sul, região de Passo Fundo, em pequenas propriedades rurais. Ambos eram penúltimos filhos: meu pai, o quinto
de uma família de seis filhos, e minha mãe, oitava de uma família de nove. A
terra era pouca para alimentar muita gente. Os jovens tinham que sair de casa e
ganhar a vida com suas próprias forças ao atingir a idade de casar. Quando
conseguiu um emprego de vendedor na loja de um conterrâneo que havia tido
sucesso em Sorocaba, meu pai resolveu pedir aquela linda garota da família Kahn
em casamento. Ela não titubeou. Abrão era bom partido, família conhecida, os
Pinskys eram sérios e trabalhadores. Além disso, ele era bonitão, montava com
elegância, lenço protegendo a camisa do suor. E frequentava a sinagoga nas
festas judaicas, embora não fosse muito religioso. Casaram-se em Quatro Irmãos
e foram morar em Sorocaba, na Rua Piratininga, numa casa pequena, como todas do
bairro, onde residiam operários de fábricas têxteis e das oficinas da Estrada
de Ferro Sorocabana.
No fogão, as chamas
alimentadas a carvão cozinhavam apenas as batatas com carne colocadas por
Luiza. No começo, uma alegria. Depois de
alguns dias Abrão perguntou se o cardápio não poderia mudar. Era o que ela era
capaz de fazer. Na casa da mãe ela era apenas ajudante, a responsabilidade da
cozinha era das irmãs mais velhas, Ester, Firmina, Ana. A não ser que recorresse
àquela vizinha que havia se oferecido para ajudar em qualquer coisa. De resto,
da casa dela costumava vir um aroma delicioso que ela não conseguia
identificar. Dona Gertrudes foi solícita.
Ensinou minha mãe a cozinhar feijão. Com um pedacinho só de carne, que o feijão
substitui bem e é muito mais barato, disse a vizinha.
O feijão fez sucesso. Meu
pai nunca mais o abandonou. Com tempo minha mãe aprendeu a colocar pedaços do
dianteiro de boi (carne saborosa e mais barata) no feijão, nunca carne de porco,
pois restavam resquícios de religiosidade alimentar a esses judeus isolados de
seus correligionários, todos vivendo do outro lado dos trilhos da Sorocabana,
na região central da cidade.
Ao preparar o feijão, macio,
com caldo grosso, bem temperado, para minha companheira de prisão domiciliar,
não posso deixar de me lembrar do processo de integração social pela comida que
ocorreu com meus pais. Adotar o feijão como alimento diário, ia muito além do
prazer gustativo que proporcionava. Tinha o papel de retribuir a generosidade da
vizinha, símbolo de um povo generoso e acolhedor. Por outro lado mostrava a flexibilidade
social dos meus pais, gente do campo, que antes vivia em grupo fechado, e que
agora se defrontava com estímulos proporcionados por um mundo urbano em acelerado
processo de transformação (final dos anos 1930, início dos anos 1940).
Final da história? Meus pais
tiveram quatro filhos e Abrão se tornou tão querido em Sorocaba que virou nome
de rua. Pais e tios tiveram filhos que tiveram filhos e hoje são mais de 100
comedores de feijão. E eu? Continuo escrevendo e cozinhando. A escrita, os leitores
julgam. Mas na cozinha estou virando fera...