Para dizer a verdade, não sei se algum dia os
brasileiros se caracterizaram pela cordialidade. Pode-se dizer que somos
informais com o próximo, mal conhecemos alguém já nos tornamos despojados no
trato logo chamamos o outro de você, abandonamos os títulos e o sobrenome e
não nos envergonhamos em nomeá-lo com um diminutivo como se fosse velho amigo.
Também somos pródigos em estabelecer contato físico: usamos as mãos sem
problemas, seja em direção a um bebê cujos pais nem conhecemos (que gracinha, é
menino ou menina?) ou um cachorro (é manso? quantos meses tem?),
batemos no peito do outro (meu marca passo sofre com o afeto de conhecidos e
desconhecidos), damos beijinhos em homens e mulheres. Mas praticamos um
cuidadoso regime de segregação social e nossa pretensa cordialidade
dificilmente se manifesta para com os menos iguais. Abraços, beijos e
elevadores sociais não são para todos no Brasil.
A discriminação social não é oficial, uma vez
que a Constituição insiste em afirmar que todos são iguais perante a lei.
Sabemos todos que isso é letra morta. Sabe o poderoso, que consegue contratar
um excelente escritório de advocacia para defendê-lo com unhas, dentes e
recursos até a prescrição da suposta pena. Sabe o pobre, que não se engana
sobre o que o espera quando infringe a lei. Sabe o ministro do Supremo quando
elucubra longos pareceres fazendo de conta que trata todos da mesma forma e não
aplica justiça de classe. Sabe o advogado, que insiste em afirmar que defende
bandidos ricos apenas porque todos os lados devem ser ouvidos (mas ele sabe
que uns são mais bem ouvidos do que outros).
Todos também têm direito à educação. Só que a
educação pública, quando alcançava até a classe média, era de excelente
qualidade. Da minha turma do então ginásio e colégio saíram desembargadores,
promotores, médicos, escritores, geógrafos, historiadores, escritores, gente de
teatro, administradores de grandes empresas. Agora, que a escola se expandiu
para todos os segmentos sociais, por mais que professores isolados se
esforcem, o ensino médio (correspondente ao antigo colegial) forma muita gente
que tem dificuldades em ler e compreender frases completas e escrever uma
sequência de pensamento articulado. Não fossem as cotas o número de estudantes
a entrar nas melhores faculdades seria irrisório. A escola, que deveria ser um
local democrático em que pobres e ricos demonstrariam seus méritos, acaba sendo
um espaço onde a desigualdade se manifesta com mais nitidez e profundidade
(pagando mais se consegue os melhores professores). E nenhum governo, qualquer
que tenha sido sua orientação ideológica, avançou no sentido de igualar as
oportunidades dos alunos.
Vale a pena falar do direito à habitação? Das
pessoas vivendo nas bordas da cidade, de famílias de trabalhadores morando ao
longo de córregos alimentados por esgotos, em bairros sem nenhuma estrutura de
lazer, bairros violentos (estes sim, não aqueles em que nós, medrosos,
moramos), dos quais médicos e professores querem distância, bairros visitados
apenas em vésperas das eleições, alvejados por discursos sedutores proferidos
por políticos que vêm a região como curral eleitoral e
os supostos cidadãos como gado votante.
É muita pretensão achar que apalpar bochechas
nos faz cordiais.