Seres humanos têm história.
A natureza também tem. A diferença é que quando nos referimos ao que aconteceu com as rochas, os vulcões, os rios e os oceanos falamos
de história natural; e chamamos de história social quando falamos daquilo que se
passou com o ser humano vivendo em
sociedade. Por consequência, nada relativo ao comportamento humano é natural, como frequentemente
qualificamos atitudes que nos parecem comuns, esperadas. A
rigor, deveríamos utilizar a expressão “é social” em vez de “ é natural”:
a maior parte dos nossos comportamentos decorrem de nossa vivência, de nossa
relação com outros membros da sociedade em que vivemos, não são atitudes determinadas
pela natureza. Sociedades diferentes induzem comportamentos diferentes. Um
terremoto é natural. A água descer da montanha e formar riachos é natural. A
prática religiosa é social. A hierarquia, a existência de pobres e ricos, de
poderosos e humildes é social.
É verdade que existe uma
fronteira ainda não estabelecida com clareza entre o que é determinação
biológica e o que é fruto de aprendizagem. Certas habilidades, alguns tipos de
inteligência, comportamentos como a agressividade, por exemplo. Esse assunto
ainda não foi resolvido pela ciência pois,
convenhamos, é muito difícil realizar experiências com gente (mesmo porque a
humanidade não quer voltar a monstruosidades como as perpetradas pelo monstro nazista Dr. Mengele). De qualquer forma, não há
dúvida de que comportamento e valores são diferentes em diferentes sociedades e
mesmo o correto e o incorreto, o legal e o ilegal variam em diferentes
agrupamentos humanos em diferentes espaços e tempos.
Em Atenas, durante o período
clássico, era socialmente aceitável certas práticas
homossexuais, particularmente quando realizadas por homens mais velhos com
garotos na puberdade ou recém saídos dela. Vinte e cinco
séculos depois muitas sociedades modernas condenavam e até puniam qualquer
manifestação de homo afetividade. Por outro lado em Atenas grande parte da
população não tinha direitos políticos. Escravos, estrangeiros e mulheres em
geral não tinham direito de voz ou voto na Ágora, onde se praticava a democracia
direta e cada cidadão (desde que não fosse criança, mulher, escravo ou
estrangeiro) defendia pessoalmente seus interesses e pontos de vista. Nas
sociedades modernas todos
os adultos são considerados cidadãos, não só uma elite como em Atenas. A cidadania em Atenas era menos inclusiva do
que nos países democráticos atuais? Era diferente. O conceito de cidadania,
assim como sua prática, é fruto de sua época. Com isso em mente fica mais fácil
incorporar a ideia da historicidade dos conceitos e das práticas históricas.
Que, não custa repetir, não são naturais. São sociais.
Quando Simone de Beauvoir
diz que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher, é claro que ela não está se
referindo à existência, ou não, de uma vagina, de seios, de barba ou pênis. Ela
não está falando de biologia, mas de sociedade. Não pensa em história natural,
mas em história social. A mulher (biologicamente falando), ao longo de sua
vida, de seus relacionamentos sociais, dos papeis que desempenha transforma-se em
mulher (historicamente falando). Da
mesma forma, é claro, acontece com o homem. Somos todos determinados
socialmente.
Aqui podemos entrar em
questões muito delicadas. Se um garoto vive em uma favela (perdão, uma
comunidade) onde o Estado praticamente não chega (nem com benefícios, nem com
repressão) e acaba sendo cooptado pelo tráfico, tornando-se um bandido, teria
sido ele determinado socialmente, não lhe cabendo nenhuma responsabilidade
individual pelas suas ações, consideradas crimes pelo Estado? Se um camarada é
empresário em uma área em que a propina se tornou um caminho histórico para a
prestação de serviços ao Governo e se sua empresa não pode sobreviver sem
serviços prestados ao Governo ou às estatais, terá ele um habeas corpus
preventivo, um perdão antecipado, uma vez que ele precisa viabilizar sua
empresa, pagar seus funcionários?
Se um político faz parte de
um partido que apregoa se preocupar com a desigualdade social no país e sabe
que será necessário muito dinheiro para eleger deputados e senadores, o fato de
ele aceitar dinheiro de campanha de grandes empresários em troca de favores
será um mal, ou um serviço à Nação?
Estes são falsos problemas.
Temos nossa história, mas não podemos abrir mão das escolhas individuais.
Cabe-nos usar o livre arbítrio. Não podemos reproduzir aquilo que a ética
condena e que é danoso para o conjunto do tecido social. E a Lava Jato está
explicando isso muito bem a quem ainda não entendeu.