QUE
JUSTIÇA QUEREMOS?
Qual
a função da Justiça em uma sociedade? Deve normatizar a relação entre os
cidadãos, fazer cumprir as leis determinadas pelos legisladores, e interpretá-las
de modo impessoal. Em uma sociedade democrática não deve privilegiar amigos,
parentes ou pessoas pelas quais sinta afinidade. É uma tarefa difícil. Para
realiza-la é necessário que os juízes não apenas conheçam as leis (muito
complexas, em um país em que a própria constituição é um calhamaço), mas
serenidade, equilíbrio, para não falar de honestidade e até desapego aos bens
materiais, já que não faltam em nosso país aqueles que são conhecidos agora
como corruptores ativos.
Aplicar
penas é a arte de enquadrar aquele que transgrediu as leis em algum item
específico do código existente. O juiz não pode criar uma lei para punir
alguém, é claro, mas cabe a ele determinar qual item dela o camarada
transgrediu. E isso pode fazer uma enorme diferença na pena a ser cumprida.
Vejam um caso recente:
Um
homem jovem atravessa a rua na faixa de pedestres na Vila Madalena. Ele é
colhido por um automóvel, em alta velocidade, conduzido por uma motorista
embriagada. O impacto foi tão forte que, após ferir de morte o rapaz, o carro
capotou. O episódio aconteceu em 2011. Após cuidadosa deliberação (durou
espantosos 6 anos) o Tribunal de Justiça de São Paulo chegou à conclusão que
não se tratou de homicídio doloso, mas sim culposo. Em outras palavras, a
Justiça entendeu que dirigir bêbada, em velocidade muito acima da permitida no
local (o carro estava entre 60 e 90 km/hora em local onde eram permitidos
apenas 30 km/hora), invadir a faixa de pedestre e matar um jovem de 24 anos de
idade é algo feito sem intenção de matar. Ou seja, para os homens que
interpretaram a lei, a motorista nem imaginou que conduzir uma máquina em alta
velocidade, com a cara cheia, poderia ser uma ameaça mortal para seres humanos
sem blindagem...
Não
é necessário ser doutor em leis para saber que a motorista, ao se alcoolizar e
sair dirigindo um veículo sabia dos riscos que corria e resolveu corre-los.
Tinha conhecimento de que matar gente no trânsito, em nosso país, raramente é
considerado crime. E porque isso acontece? Porque os juízes se recusam a dar um
passo adiante para romper essa justiça de classe que “entende” mais facilmente
a falha do homem ao volante do que do pedestre. Que, de resto, já está morto...
Juízes
frequentemente declaram que não podem julgar a partir do clamor popular. Podemos
até concordar com a ideia, mas a imagem que se quer vender é a de massas
semelhantes às manadas, agindo de forma irracional, turbas dispostas a linchar
sem dar ao acusado o direito à defesa. Do outro lado estariam essas figuras
togadas impolutas, gentes plácidas, equilibradas e sapientes praticando a verdadeira
justiça, permitindo o contraditório, sem afoiteza, garantindo o estado de
direito, impermeáveis a influencias espúrias e a clamores populares. Infelizmente, não é assim que a coisa tem
funcionado. Temos frequentes notícias de juízes frequentando espaços e personagens
de outros poderes: são churrascos, festas de casamento, casas de veraneio,
jatos executivos... Se o clamor popular pode contaminar sentenças, conversas
discretas em ambientes elegantes não contaminam? E aqui chegamos à questão
central, a relação entre Justiça e a Sociedade.
Quem
vem antes, a lei ou a prática social? Em outras palavras, cabe à lei fazer
cumprir os costumes de uma sociedade, ou cabe a ela determinar qual deveria ser
o comportamento da sociedade diante de diferentes desafios? A História nos
ajuda a entender essa diferença. O código de Hamurabi, era uma codificação das
leis já existentes na Mesopotâmia e estas, por seu turno, retratavam as
práticas da sociedade mesopotâmica. Já na Torá, o Pentateuco, que antes de se
tornar livro sagrado para judeus e cristãos era um código de leis e práticas
sociais, vemos algo distinto: o legislador tem a intenção de orientar o
comportamento da sociedade daquela época, de estabelecer novas normas, de
apresentar leis que representam um avanço nas práticas e comportamentos de
então. Enquanto o Código de Hamurabi é um retrato, a Torá tem um compromisso
com a ética, quer uma sociedade mais justa, pessoas mais honestas, um mundo
melhor.
Esse
é o dilema dos legisladores e dos aplicadores da lei. Se apenas trabalharem
considerando nossas práticas sociais atuais corremos o risco de continuar
achando “normal” que assassinos motorizados e alcoolizados continuem a matar. E,
por que não, que ladrões instalados no poder, continuem a se apropriar de bens
públicos.
.