Onde está o professor?
Correio Braziliense


Entrar no ginásio do Estado era o primeiro orgulho que um garoto podia propiciar a sua família. Símbolo de talento e inteligência, o uniforme das escolas oficiais atestava a superação da primeira grande barreira para se vencer na vida. Logo vinham os veteranos a nos prevenir da dureza do professor de Matemática, das implicâncias do professor de Francês, da simpatia do de Português, e assim por diante.
O corpo docente era estável. O professor fazia seu exame de ingresso no magistério e, após chegar a um bairro ou uma cidade onde estivesse bem, fixava-se, ocupando seu espaço de intelectual, contracenando com o juiz, o médico e outros profissionais de destaque. Adquiria uma casa, vestia-se bem e era admirado e invejado como vencedor. Conhecia todos os seus alunos, preparava suas aulas e corrigia as provas em casa. Tinha dignidade.
Onde está esse professor?
Constrangido a dar um número absurdo de aulas para sobreviver, não tem tempo, nem disposição, para ler, se atualizar ou fazer qualquer tipo de reciclagem. À exceção de heróicos casos avulsos ou de grupos de resistência enquistados no marasmo, o professor da escola pública é um burocrata do ensino, que fica procurando no calendário o próximo feriado, e se viciou em folhear o Diário Oficial buscando, nas fissuras da legislação, alguma folga que lhe permita uma pausa na sua atividade enlouquecedora.
Pois não é enlouquecedor dar aulas para 15, 20 ou 30 classes diferentes, centenas e centenas de alunos, rostos sem nome, nomes sem rosto? A “insubstituível relação professor-aluno” é viável quando um não conhece o outro? E que dizer das aulas dadas mecanicamente, terminar uma para dar outra e depois outra, turma após turma, numa rotina que desgasta e aliena?
Os alunos não têm rosto, mas o professor também não tem. Cada ano, milhares de professores experientes abandonam o ensino para se dedicar a qualquer outra atividade que lhes permita um pouco mais de conforto e saúde mental. Cada ano, milhares de professores-estudantes, às vezes primeiranistas de faculdade, entram em sala de aula para ensinar algo que nem sequer aprenderam. As escolas não têm mais corpos estáveis, não têm também rosto, assim como os alunos e professores, com raríssimas exceções. O professor-aluno, de passagem por uma escola (fica um ano apenas, às vezes alguns meses), não conhece o bairro, não conhece a realidade dos alunos e, mesmo que tivesse boa formação, não saberia estabelecer a necessária relação entre o patrimônio cultural da humanidade e o saber do grupo que deve educar.
O salário do professor da rede pública é um dos nós da questão. Impossibilitado de viver com um número razoável de aulas, o professor vai aumentando sua jornada de trabalho. Ao esticar sua jornada deixa de planejar, de ler e preparar aulas, e passa a corrigir provas (geralmente com respostas únicas para facilitar a correção) em sala de aula.
Não é preciso enfatizar aqui o resultado desse processo. O aluno termina (quando termina) o segundo grau sem saber escrever, sem desenvolver o espírito crítico, sem estabelecer conexão entre escola e vida. É um aluno mal preparado para o vestibular, candidato, na melhor das hipóteses, a um curso superior (?) de terceira categoria. É um cidadão mal preparado para o mercado de trabalho, com baixa produtividade. O pesado investimento da sociedade tem um retorno sofrível, muito dinheiro jogado fora.
O pior (ou o melhor) é que a solução não é tão difícil assim. De uma forma ou de outra, os prédios escolares encontram-se em estado aceitável. O equipamento está longe de ser moderno, mas não há déficit no essencial. A questão central é, realmente, o professor.
Além do salário, ele tem de superar o isolamento a que está submetido. Hoje é comum professores da mesma turma que não conversam sobre seus alunos ou sobre o programa, e até nem se conhecem. Vão à escola, entram nas suas salas, dão suas aulas e vão embora. Sentem-se desassistidos e desvalorizados.
Há ainda a questão da leitura. A proporção dos professores que lê é muito baixa. A dos que têm o hábito de adquirir livros (seu instrumento de trabalho) é menor ainda.
As medidas para superar, ou pelo menos amenizar, o problema são viáveis e urgentes e demandam:
·        Uma reavaliação do salário dos professores, com valores que alcancem, pelo menos, um nível mínimo de dignidade. Sem dar, não se pode exigir;
·        Um programa maciço e permanente de atualização do professor, para permitir o final do seu isolamento, que é, às vezes, pior que o baixo salário;
·        Um programa, também maciço, de atualização bibliográfica, com a formação de bibliotecas escolares e de consulta.
 
(O artigo acima foi publicado no dia 24 de maio de 1991 na página 2 do Estadão. Fora a nomenclatura alguma coisa de essencial mudou nestes últimos 13 anos?)