O fogo. A roda. A agricultura. As cidades. As manifestações
artísticas. A criação dos deuses. O monoteísmo ético. A filosofia. A capacidade
de resolver conflitos sem recorrer à violência. A atenção às crianças e aos
idosos. O respeito às mulheres. Todos eles foram conquistas da
civilização.
O processo que ocorre com a humanidade pode também se dar com os
indivíduos. Ninguém nasce sabendo produzir ou usar o fogo (lidar com ele,
evitar queimaduras, é um item obrigatório no elenco das preocupações dos pais),
plantar, ou produzir arte. Usufruir do patrimônio cultural da humanidade é um
direito e um privilégio. Também a convivência é um aprendizado social: a
percepção do outro é sinal de inteligência social. Formas de culto, organização
de categorias de pensamento, conhecimento tecnológico, tudo é fruto de
aprendizagem. Como fruto de aprendizagem é tanto a polidez, quanto a capacidade
de apreciar música ou artes plásticas. Disse e repito que a grande diferença
entre o ser humano e outros animais é nossa capacidade de produzir, armazenar e
consumir bens culturais, materiais e imateriais. Outra capacidade que temos é a
de sermos, fundamentalmente, racionais. Isso implica em ter opinião sobre as
coisas, mas implica também em sermos capazes de alterar nosso olhar sobre as
coisas e as pessoas. Por exemplo, as mulheres.
Confesso que, ao contrário da minha casa, na escola e na rua de
minha cidade no interior paulista o ambiente era machista e homofóbico. A
superioridade do macho e a ideia de que mulheres eram bens de uso (com exceção
da mãe de cada um de nós, que era uma santa...) permeava nossa relação com as
meninas do bairro, as colegas da escola e até com algumas professoras mais
liberais. Graças à minhas escolhas profissionais e pessoais, e à convivência
com homens mais evoluídos, com mulheres maravilhosas e com leituras adequadas,
fui me encaminhando para posições bem diferentes daquelas que tinha quando
garoto. Isto aconteceu com muita gente. Isto aconteceu com muitos povos e
culturas. No mundo civilizado não se atira mulheres nos rios da Babilônia para
saber se elas são virgens, não se apedreja mais mulheres por terem
prevaricado, não se queima mais mulheres na Inquisição por conhecerem
segredos de ervas que curam. A dupla moral sexual (minha mulher tem que ser recatada,
eu posso ir a orgias sexuais em Brasília) é coisa de imbecis retrógrados.
O mundo de hoje não valoriza mais o chamado macho alfa, capaz de
matar um leão só com as mãos: um nerd competente é mais útil como parceiro de
uma mulher do que um troglodita agressivo e violento (além de ser muito mais
agradável). Mais do que proteção física as mulheres buscam companheirismo,
compreensão, cumplicidade. E muitos homens, inclusive quando representam o povo
nas casas legislativas, não sabem disso. Ou esquecem. Ou fingem esquecer,
preocupados que estão com a vida humana. Não querem é perder o controle,
perder o poder. Se preocupados estivessem com a vida humana não extrairiam de
forma desonesta parte das riquezas produzidas no país para seu usufruto pessoal,
com prejuízo da saúde pública, da educação, da criação de empregos e,
indiretamente, até da segurança dos cidadãos. A destruição quase completa da
maior empresa brasileira (Petrobras) é só a ponta do iceberg, que abaixo da
linha dágua mostra falcatruas com a conivência de políticos em quase todas as
concorrências públicas que, na realidade, não são concorrências, nem são
públicas.
E são esses seres puros e imaculados, detentores de
procuração dos deuses e dos santos, que querem legislar sobre o útero de cada
mulher, como conceituou com rara felicidade o ministro do Supremo Luís Roberto
Barroso? Com que direito? Com que autoridade?
Países modernos e civilizados são laicos e democráticos. É
inaceitável querer transformar problemas de saúde pública em questões de fé.
Embora diferentes (o que é ótimo), mulheres não podem mais serem tratadas como
inferiores. Da mesma forma como os governos não têm o direito de legislar sobre
o pênis dos homens, eles não têm como e por que legislar sobre o útero das mulheres.
Acabou. Já era. Página virada. Não se pode caminhar para trás.