Símbolos nacionais
correio Braziliense


Cantar o hino nacional, participado de coro formado por dezenas de milhares de vozes, no novo Mineirão, em que a cobertura funciona como concha acústica gigantesca, com a seleção perfilada prestes a disputar um jogo da Copa, foi uma experiência emocionante, quase assustadora para corações frágeis como o meu. É interessante como o público se apropriou do hino, cantando-o por inteiro, não deixando que fosse amputado pelo padrão FIFA. E se apropriou porque o tem como seu, como elemento de identidade coletiva, como representação da nação, não do Estado; da sociedade, não do Governo. A bela melodia ecoando pelos estádios da Copa (mesmo com uma letra difícil, parnasiana e empolada) tem amolecido corações, aproximado pessoas, funcionado como música unificadora de um povo desacostumado a entoar hinos guerreiros, como fazem nossos vizinhos hispano-americanos. É verdade que os governos, particularmente os autoritários, tentam se apropriar dos símbolos nacionais como se lhes pertencessem. A frase cunhada durante a ditadura “Brasil, ame-o ou deixe-o” faz referência ao Brasil deles, dos militares, e não a um país de todos. Segundo os donos do poder, haveria uma só maneira de amar o Brasil, qual seja, amar o governo dos generais de plantão, fechar os olhos para a tortura, aceitar a falta de liberdade de expressão e aplaudir. Ou, no mínimo, calar-se. Quem não fazia isso era “subversivo”, ou “inocente útil”, não amava o país e devia dar o fora daqui. Que aqui era lugar apenas de patriotas... Esse discurso provocou uma confusão em muitas cabeças. Houve quem passasse a ver nos símbolos nacionais como o hino e a bandeira elementos representativos de um governo, do governo militar, e não da nação. Errado. Não se pode entregar, de mão beijada, os símbolos nacionais a nenhum governo. Tomem-se os casos exemplares de dois hinos, o alemão e o russo: o primeiro, composto por Haydn em 1797, com letra de Haschka, exaltava o imperador Francisco II. Posteriormente, já com letra de von Fallersleben (1841), com o título de “Canção dos alemães”, foi utilizado para exaltar o nascente nacionalismo alemão. Em 1922, foi consagrado como hino oficial da Alemanha. Nos anos 1930 e começo dos 1940, foi utilizado pelos nazistas, que adoraram (reinterpretando à sua maneira) o início da letra, que coloca a “Alemanha acima de tudo no mundo”. A derrota nazista na II Guerra Mundial cria um sentimento antinacionalista e o país ficou sem hino por mais de uma década. Finalmente, nos anos 1950, depois de muita hesitação, o hino voltou a ser utilizado, mas apenas com a terceira estrofe do poema, que fala de justiça e liberdade, não de hegemonia e dominação. E a música de Haydn continua linda. Durante os primeiros anos após as revoluções socialistas de 1917, as autoridades soviéticas não achavam que o país deveria ter um hino nacional, tendo adotado a Internacional Socialista, música que pregava a união e o levante do proletariado unido de todas as nações do mundo. Acreditavam que o desmoronamento do antigo império czarista contagiaria todos os países da Europa e depois o mundo, daí não ter sentido criar-se um hino nacional para uma revolução de caráter internacional. Já no período stalinista, quando a União Soviética conseguiu expulsar os nazistas do seu território, Stalin concluiu que a revolução mundial não estava tão próxima e escolheu uma bela melodia criada por Alexander Alexandrov, com letra de Mikhalkov e El-Registan. Stalin aproveitou para “sugerir” que sua importância como pai dos russos fosse ressaltada na letra do hino, e durante mais de uma década ele foi cantado assim. As alusões a Stalin foram retiradas da música durante o governo de Krutchev e, no governo de Yeltzin, houve uma tentativa de abandoná-lo de vez. Mas o povo gostava do hino antigo e Putin pediu que fossem feitas novas alterações na letra, tirando seu caráter socialista, substituindo-o por um tom mais nacionalista, impensável nos tempos da revolução internacional de Lenin (“Glória à nossa pátria livre”, etc.). Assim, voltou o velho hino, adequado aos novos tempos... Ele passou por diferentes governos, mas se manteve com a mesma melodia por ser um patrimônio do povo, não deste ou daquele dirigente. Porque símbolos nacionais são da nação. As pessoas podem e devem se apossar deles, sem que isso signifique adesão a qualquer governo.

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