Os americanos e a cidadania
Folha de S.Paulo


Erra quem vê as guerras americanas apenas como movimentos mais ou menos disfarçados do capital
Num ensaio clássico, o sociólogo inglês T. H. Marshall estabeleceu que três espécies de direitos deveriam ser alcançados para que a cidadania pudesse ser exercida com plenitude: o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei, ou seja, os direitos civis; o direito de se organizar por afinidade de interesses e opinião, de votar e ser votado, de participar dos destinos da sociedade - os direitos políticos; e, finalmente, mas não por último, os direitos sociais, os que asseguram a participação do indivíduo na riqueza coletiva, o direito ao trabalho, à educação, ao salário justo, aos serviços de saúde, a uma velhice tranqüila, sem os quais os direitos civis e políticos poderão não ter condições de ser exercidos.
          Filha do iluminismo e das revoluções burguesas, a cidadania talvez tenha encontrado nos Estados Unidos da América o espaço onde melhor se sentiu, onde melhor foi recebida. Entretanto, neste momento, o mundo se rebela contra a prática política desse nosso "grande irmão do Norte", queima seus símbolos nas ruas, ofende seus líderes, questiona até a Coca-Cola... O que aconteceu com a pátria da democracia moderna?
          Em momentos de exaltação como os de hoje, em que tem gente que "descobre" as desvantagens dos sanduíches de carne moída e quer usar isso como ato de protesto, não falta quem garanta que os EUA nunca foram uma democracia. Por outro lado, há outros, que pregam a imposição do american way of life no mundo inteiro, por bem ou por mísseis. Talvez seja conveniente não entrar na excitação midiática e pensar um pouco sobre a formação e os valores daquela que é atualmente, gostemos ou não, a única megapotência mundial.
          A Constituição de 1797 começa com a expressão "Nós, o povo dos Estados Unidos" -fórmula que se opõe frontalmente à prática política até então vigente, em que o senhor (rei, nobre, tirano) decidia pelos súditos. Um enorme avanço, mas uma democracia filha do seu tempo: mulheres e pobres dela não faziam parte. Negros escravos e índios também não. A consciência de que não se constrói uma nação de verdade com escravos foi tão contestada que o país entraria numa guerra civil para poder resolver a questão. Tudo isso acontecia enquanto o país se ampliava pela colonização do Oeste, pela compra, pela incorporação e até pela rapina de territórios de países vizinhos.
          Como substrato de todo o movimento expansionista destacava-se uma autodeclarada vocação messiânica, um destino histórico inerente à própria constituição da nação americana, destino pretensamente estabelecido pelos primeiros colonizadores, homens duros e determinados como os heróis dos filmes de faroeste, gente que não se incomodava em viver sem conforto, desde que fosse para colocar ordem na cidadezinha fora-da-lei do Oeste, na República contestadora da América Hispânica, na Europa ameaçada por "ideologias espúrias", ou no Extremo e Médio Oriente.
          Erra quem vê as guerras americanas apenas como movimentos mais ou menos disfarçados do capital. Países têm rosto e personalidade, e os americanos, que ajudaram a Europa a destruir o nazismo e foram os únicos a interferir em conflitos nada rendosos (como o da Somália ou o da Bósnia), a pedido da comunidade internacional, sentem-se no direito de investir contra inimigos reais ou imaginários, em nome do papel que lhes teria sido atribuído, quase por direito divino, em algum momento da história. E é aí, claramente, que mora o perigo. Nada a favor de Saddam Hussein, é claro. Mas, por outro lado, é difícil e perigoso lidar com destinos nacionais supostamente determinados por Deus: eles ameaçam o difícil equilíbrio reinante no mundo, criando um clima de insegurança planetária digno dos piores momentos da Guerra Fria.
          A civilização islâmica ofereceu suas técnicas de irrigação, sua música, sua arte e sua medicina ao mundo cristão. Esses elementos culturais são, hoje, valores universais incorporados ao Ocidente, que só ganhou com isso. Talvez os EUA possam, passada sua fase provinciano-truculenta, mostrar ao mundo as duras conquistas da cidadania e fazer com que valores e práticas da democracia, conquistados no Ocidente, estejam à disposição do mundo todo.
          Não vejo como eleições a cada quatro anos, ausência de golpes militares, imprensa livre, direitos para minorias poderiam prejudicar os habitantes de muitos países. Separação entre Estado e religião, Legislativo e Judiciário fortes, acesso universal à educação deveriam fazer parte de todos os Estados modernos. Quem sabe o mundo emerge desta guerra disposto a reestruturar seus organismos mundiais de forma a universalizar os direitos do cidadão?
          Num mundo globalizado econômica e culturalmente tornam-se necessárias instâncias políticas e jurídicas mais abrangentes e poderosas, de caráter deliberativo, não puramente consultivo. Nesse contexto, um novo papel poderia caber aos EUA. Sem messianismo e sem armas, de preferência.