Vó Sara vem para o Brasil
Correio Braziliense


Em 1927, finalmente, minha avó Sara resolveu abandonar a Lituânia. Meus tios contam que foi uma decisão muito difícil para ela, uma vez que a vida tinha melhorado exatamente nos últimos anos. Mas meus tios mais velhos insistiram muito e ela acabou se convencendo de que valeria a pena abandonar tudo e partir para o Brasil. Três ou quatro de seus irmãos já haviam ido para a América “de verdade”, antes da Primeira Guerra Mundial, e estavam bastante bem, mas não haviam conseguido visto para ela. A América possível ficava bem mais ao sul, era mais quente, nela as pessoas não falavam inglês, mas os filhos insistiam que era hora de ir embora. A instabilidade política na região era muito grande e aquele pedaço de terra onde Sara vivia havia pertencido sucessivamente à Rússia e à Polônia, com curtos períodos de autonomia. Os camponeses criaram enorme desconfiança com relação a estrangeiros, mesmo aos judeus que viviam na região havia sete séculos e eram frequentemente vítimas de perseguições, seja sob os auspícios do governo, seja por conta da própria população. A Primeira Guerra Mundial seguida da Revolução Russa foi um período muito conturbado, que apenas se estabilizou com a Paz de Brest Litovsk e o surgimento de um governo nacionalista. Crônicas de família dão conta de que minha avó estava grávida da caçula de nove filhos quando ficou viúva. Suas duas vaquinhas e a pouca terra que possuía mal davam para alimentar a família toda, principalmente sem a liderança e a força de trabalho do marido. Foto tirada nessa época (lá por 1922) revela um grupo familiar de poucos recursos, com roupas simples e alguns garotos até descalços. Com a reforma agrária ocorrida na Lituânia nesse ano, a família recebeu um pouco mais de terra, o que permitiu o plantio de verduras e legumes. Além de alimentar a todos, o leite e as verduras eram vendidos para um sanatório para tuberculosos que havia lá perto. Com isso, e com a mão forte de dona Sara e do filho mais velho—que tinha plenos poderes sobre os mais novos—, a família começou a prosperar, conseguiu comprar sapatos para todos e ainda se deu ao luxo de mandar os filhos mais velhos para o colégio. Minha mãe contava que, um dia, vó Sara e tio Arão (exatamente o filho mais velho) foram chamados pelos responsáveis do sanatório. Vencendo o medo, eles foram até a colina onde ele se situava. O assunto não era de assustar ninguém, muito pelo contrário. Os produtos que vendiam ao sanatório, particularmente o leite, eram considerados excelentes, tanto que os diretores queriam que minha avó produzisse mais, já que ela “não adicionava água ao leite”. Acertadas as condições, a família viveu alguns poucos anos de relativa tranquilidade, não fosse pelas ideias “malucas” do tio Shlomo, que dizia ter chegado o momento de irem para a América, pois muita coisa ruim iria acontecer ainda por lá. Dizem que minha avó chorou por dois dias seguidos: toda sua família vivera na região “desde sempre”, a situação finalmente ficara boa, todos os amigos viviam por perto, a sinagoga dela estava lá, assim como a escola e o cemitério, o que ela iria fazer com nove filhos em uma terra distante, onde, segundo ouvira dizer, animais selvagens andavam pelas ruas mesmo durante o dia? Era verdade que, na Lituânia, em algumas noites de inverno, lobos famintos se aproximavam assustadoramente das casas e ela já proibira as meninas de saírem sozinhas depois que escurecia, mas sabe-se lá que tipo de fera existia naquela América para onde eles iriam, que nem sequer era a América de verdade, que naquela não conseguiram permissão para entrar; era um país bem ao sul, chamado Brasil. Assim, sem querer, dona Sara e toda a família, e mais um grupo de amigos, todos judeus lituanos, vieram parar no Rio Grande do Sul, na região de Passo Fundo, onde trocaram uma terra cansada por uma virgem, com enormes árvores, cobras e geografia estranha, mas um povo alegre e receptivo e, melhor que tudo, nenhum antissemitismo. Os nove filhos deram-lhe 29 netos, dos quais 19 homens e 10 mulheres. Se fosse viva (morreu em 1966, com 80 anos) teria mais de 60 bisnetos e incontáveis tetranetos, quase todos vivendo no Brasil. São médicos, engenheiros, professores, pesquisadores, administradores, homens e mulheres de negócio, veterinários, psicólogos, servidores públicos etc. etc. Ainda bem que ela saiu. Numerosos parentes foram aniquilados pela barbárie nazista. Ainda bem que o Brasil soube recebê-la. Sangue novo é sempre bom para o país.

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