Patriarcalismo e pedocracia
Correio Braziliense


Lucas, amigo dos velhos tempos, tem um filho que só agora, depois dos quarenta, tornou-se pai e trata o garoto como uma pedra preciosa frágil. Sempre ultra vestido, como se São Paulo tivesse se transformado em Toronto, o nenê, já com um ano de idade, é sempre monitorado por ele, a mãe, uma babá e duas avós que correm para atender os desejos (ou supostos desejos) do pimpolho. Gustavo – este o nome do menino – ainda não sabe conversar, mas já consegue dar ordens. Está crescendo com uma concepção umbigocêntrica  do mundo e logo terá dificuldades no seu processo de socialização.
Até aí, nada de novo. Todos nós conhecemos crianças mal-educadas, grosseiras até, desde a mais tenra idade. Sua falta de educação é relevada pelos pais, condescendentes, em nome do que seria o direito da criança de fazer o que quiser. Pixotes de dois anos recebem presentes e os jogam no chão, em acessos que devem parecer aos pais apenas manifestações de autenticidade. Crianças maiores acham perfeitamente legítimo não cumprimentar as pessoas ao chegarem ou saírem de algum lugar, mesmo que seja a casa de parentes próximos. Dar um simples “oi” para pessoas de idade, nem pensar. Eles não gostam da aparência de seres humanos mais velhos, acham que são feios, portanto não merecedoras de um simples cumprimento. 
Ao rompermos os contornos de uma sociedade patriarcal, em que os chefes de família tudo podiam e eram tratados como semideuses, estamos criando uma outra que gira em torno das crianças e de seus caprichos. Agora Lucas recebeu a informação de seu filho que o neto não poderia visitá-lo porque o apartamento do avô não tinha tela protetora nas janelas. Não adiantou explicar que os vidros seriam travados, que todos os bancos e cadeiras ficariam longe da janela, que mais dois olhos atentos seriam somados aos dez que cuidam normalmente do Gustavo. O filho foi decisivo: ou o pai coloca tela, ou grade nas janelas, ou não veria o neto em seu apartamento.
Ora, estava pensando nisso quando vi o artigo de Roger Cohen, do The New York Times(na edição do NYT que sai na Folha de S. Paulo). Segundo ele crianças de várias escolas britânicas foram orientadas nos últimos anos a usarem óculos para manusearem certas colas, a não brincarem com caixas de ovos vazias, por causa da contaminação por salmonela, a usarem capacetes ao passarem por baixo de certas arvores e até a não irem a boliches, onde poderão se enroscar no maquinário. Cohen acha que “estamos criando conformistas mimados, inclinados a verem perigo por todos os lados”.
Tendo a concordar com o jornalista. Meus vizinhos do apartamento de cima, por exemplo, juntam o medo de expor as crianças a uma educação (?) bastante liberal, por assim dizer. As crianças com 7 e 9 anos, aproximadamente, são levadas e trazidas da escola por motorista acompanhado de uma empregada (não, não sei se o carro é blindado, mas deve ser) e passam longo tempo em casa. O piso do apartamento é frio, parece que de mármore. Carpete poderia dar alergia, assim como as frestas da madeira, se o piso fosse de tábuas.  Como as crianças quase não saem, o chão é adequado e o barulho na cabeça do vizinho não conta, o menino tem um skate e a menina usa patins. Quando cansam, jogam bola. Tudo isso na nossa cabeça e sem nenhum sentimento de culpa, já que criança pode tudo. Os pais, ora os pais, acham tudo muito adequado, principalmente porque passam a maior parte do dia fora.
Isto tudo vai se refletir na escola, onde a criançada trata os professores (e explicitam isso) como seus empregados (“meu pai é quem paga o seu salário, você não pode me dar nota baixa”). Muitas escolas toleram alunos chegando atrasados, usando telefone celular, enviando mensagens de texto e até participando de redes sociais no meio da aula. Desvalorizado por não ser mais a principal fonte de informação do aluno, como acontecia nos cinco séculos da prevalência da cultura escrita, o professor vê sua autoridade torpedeada por uma conjunção de pais condescendentes e de uma sociedade que não conseguiu encontrar um substituto adequado para o patriarcalismo e acabou por estabelecer a pedocracia.
Está na hora de buscar o equilíbrio.


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