Bebidas alcoólicas e futebol
Correio Braziliense


O Estádio vai encher. Afinal, nunca um goleiro jogara 1000 partidas com a camisa de um mesmo time, e nesses tempos em que sonhos espanhóis, italianos ou ingleses povoam a imaginação de garotos mal saídos das fraldas, é uma raridade ver alguém persistir em disputar essa imensidão de jogos por uma equipe apenas.
Como sabemos que o estádio vai encher compramos ingressos com antecedência, por um site, tudo muito civilizado. Não encontramos mais os melhores assentos, os laterais, vamos para o fundão, atrás do gol. Afinal, queremos ver de perto é o goleiro. No domingo combinamos estratégias para nos locomover até o campo. Afinal, alem dos três adultos, levamos três crianças, de 11, 9 e 4 anos, todos devidamente paramentados com camisas do São Paulo, algumas atuais, outras mais velhas, com propaganda de antigos patrocinadores. Como os jogadores, também as empresas não são fieis, trocam de times como quem troca de camisa...
De uma forma ou de outra (mais de outra do que de uma) estacionamos a van, pagamos a chantagem solicitada pelos assustadores flanelões, trancamos e veículo e nos dispomos a marchar os dois quilômetros necessários até o estádio. As crianças nos acompanham naquele mar de três cores, o branco, o preto e o vermelho dando a impressão de que será jogo de um time só. A multidão caminha animada, alguns param para beber em barracas, outros compram latinhas de cerveja de ambulantes carregando isopores. Na porta do estádio formam-se filas gigantescas, as pessoas se espremem para passar pela minunciosa revista, executada por policiais, homens e mulheres. Nada passa, nem uma garrafa de água, nem um pedaço de jornal com a escalação das equipes, nem um guarda chuva para uma possível tormenta. Questão de segurança, dizem.
Dentro dos anéis do estádio começamos a correr, junto com a adrenalina que leva a frequência cardíaca dos torcedores a desaconselhados três dígitos. Apenas espiamos de longe aqueles que seriam nossos assentos. Embora falte ainda uma hora para o jogo começar eles já estão ocupados, assim como os caminhos que poderiam nos levar até lá. Não há ninguém no Morumbi para quem possamos expor nosso problema, nenhum funcionário uniformizado, nenhuma autoridade aparentemente constituída. Achamos finalmente um PM que nos aconselha a nos sentar “onde houver lugar”, principalmente com crianças, é para não começarmos a “criar caso”. Criar caso, no caso não criado, seria simplesmente reivindicarmos os assentos escolhidos e pagos, mas quem vai se meter com a autoridade, a única presente naquele espaço, a única a nos dar conselhos, ainda mais estando com crianças, como ele diz. Vamos então sentar naquele espaço do qual não se tem boa percepção espacial. Não se tem noção de profundidade, mas, em compensação, tem-se noção muito pior de lateralidade. Não sabemos se, em uma cobrança de escanteio, a bola vai para o gol ou para o meio do campo, mas, não somos de criar caso, inda mais com as crianças, como disse a autoridade...
Meia hora depois também o nosso lance de arquibancadas fica lotado. As pessoas vão chegando e buscando os poucos lugares isolados livres. Depois acomodam-se nos degraus, enquanto o jogo começa. E o povo continua chegando e vai passando, lentamente, cada vez mais lentamente, na nossa frente. E nós com as crianças. Por absoluta falta de lugar (quem vendeu mais lugar do que havia? Os assentos não são numerados?) as pessoas vão parando na frente dos já sentados. As crianças não conseguem mais enxergar o campo, nem ficando de pé. Em vez de uma fileira de gente sentada, o degrau de arquibancada recebe duas camadas de pessoas de pé, inclusive todos nós.
Um dos adultos pede para que o homem, de pé na frente dos garotos, se desloque um pouco para o lado, “a criança não vê nada do jogo tão ansiado”. O “invasor” reage mal, diz que também pagou, solta uns impropérios, dispõe-se a resolver a pendência no braço e “lá fora”, onde quer que esse “lá fora” signifique. As pessoas dividem-se entre os já instalados e os “errantes”, vários com nítido bafo de álcool dando ênfase às palavras de valentia proferidas aos berros. Exerço com dificuldade papel de moderador. Não há paz, mas um armistício. A tensão persiste. O jogo acabou para nós. Bem antes do “apito final”  vamos embora. Com as crianças. Bastante assustadas.
É neste nosso país que as fábricas de cerveja querem voltar a vender a bebida nos estádios. Que elas queiram colocar o seu produto a qualquer custo é lamentável, mas já sabido. Que parlamentares e ministros façam o jogo das cervejarias faz com fiquemos muito preocupados. Para não falar desconfiados...


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