Identidade nacional num mundo globalizado
Correio Braziliense


          Muitos dos conflitos do século XX ocorreram, aparentemente, pelo fato de se tentar estabelecer estados multinacionais, com a configuração de um estado nacional. A Iugoslávia será, talvez, o exemplo mais recente de conflitos proporcionado pela confusão de identidades. Sérvios, bósnios, albaneses, croatas, macedônios foram, durante o tempo da hegemonia orquestrada pelos comunistas e regida por Tito, personagens de um estado nacional multicultural e multiracial que, de fato, não existia. Finalizado o período autoritário, os conflitos, oriundos de velhas rivalidades, vieram à tona, proporcionando uma guerra que ultrapassou as fronteiras da antiga Iugoslávia e ameaçou o equilíbrio a duras penas conquistado pelos países da Europa.
          Para muitos, aqueles episódios sanguinários, a poucos quilômetros do epicentro da comunidade européia, constituíam-se na prova cabal da necessidade de tantos estados nacionais quantos fossem reivindicados, para dar conta das especificidades lingüísticas, religiosas e culturais, independentemente da extensão territorial, do contingente populacional e da viabilidade econômica da aspirante a estado nacional. Não percebem – ou não se preocupam esses falsos libertários – com o fato de que especificidades sempre vão existir. Num país como a Espanha, ou como a Alemanha, para não falar da Rússia ou da China, pode-se encontrar uma enorme gama de culturas relativamente distintas. Na França, por exemplo, é perceptível a diferença entre normandos e bretões, para ficar em vizinhos próximos, e estes são bem distintos de provençais e de alsacianos, que, por sua vez, são bem diferentes entre si. Isto significa que cada uma dessas denominações deveria se tornar independentes? Não é de se acreditar.
          Por outro lado, o século XXI nos apresenta um novo ingrediente da questão, que é a extrema mobilidade populacional. A massa de mão-de-obra que não trabalha mais em seu lugar de origem é impressionante. Não há números inteiramente confiáveis, mesmo porque uma grande parte dessa força de trabalho é clandestina, mas é perceptível a presença de europeus “pobres”, asiáticos, africanos e latino-americanos (inclusive brasileiros) desempenhando tarefas que europeus, norte americanos e japoneses, principalmente, não desejam mais realizar, o trabalho considerado sujo. Essa mobilidade é tão grande que vem sendo identificada como uma invasão prestes a desvirtuar as características fundamentais da cultura dos Estados Unidos (no caso da presença latino-americana) ou de alguns países da Europa (no caso de muçulmanos, particularmente os de origem árabe).
         
Curiosamente, esse movimento se dá mesmo no interior de países não muito ricos. Mesmo no Brasil, temos recebido um contingente nada desprezível de imigrantes hispano-americanos, particularmente de bolivianos, os quais, segundo estimativas confiáveis, já se contam na casa de oitenta ou cem mil pessoas, só na cidade de São Paulo. Desses, uma boa parte trabalha em confecções, desenvolvendo turno de trabalho incompatível com nossas leis, alem de viverem em condições inadequadas a seres humanos livres. É verdade que uma boa parte deles vive no Brasil clandestinamente, ou na linguagem eufemística deles próprios, “indocumentado”, mas será isso razão suficiente para fingir que eles não existem? Aliás, não será melhor para todos fazê-los existir, de modo a entrar no mercado de trabalho nas mesmas condições de outro trabalhador qualquer, sem que se lhes atribua o caráter de competição desonesta com o operário “documentado”?
          Temos, nessa história toda, uma questão de fato e outra de direito. As relações de produção, globalizadas (para o bem e para o mal), estão a exigir uma legislação diferente, de todos os países, inclusive o Brasil, para com seus moradores. Pela lei eleitoral, é perfeitamente possível o senador Sarney ser eleito por um estado da região Norte, onde ele pisou poucas vezes; é perfeitamente viável eu votar para prefeito de Sorocaba, cidade onde não vivo há décadas, desde que eu continue com o título eleitoral de lá; mas não é permitido, por exemplo, a um trabalhador boliviano, que optou por manter sua cidadania, escolher o vereador que represente o Bom Retiro ou o Pari, bairros nos quais trabalha e vive há muitos anos. O pressuposto de uma lealdade nacional única e excludente, no atual estágio do mundo, é um anacronismo evidente, que nossos legisladores têm a obrigação de reconhecer.
         
A esdrúxula idéia de que a presença mexicana nos Estados Unidos – por sinal em regiões que no século XIX pertenciam ao México – pode enfraquecer os ideais americanos é de um chauvinismo que nos remete aos piores discursos de John Wayne, enquanto se ocupava em “livrar” o território americano dos índios selvagens que ousavam se antepôr à onda civilizatória dos brancos protestantes anglo-saxões. A abertura econômica das fronteiras provoca novos desejos e necessidades, reais ou idealizadas. A destruição de economias de subsistência colabora para que o movimento do trabalho adquira dinamismo quase igual ao movimento do capital. Tudo isso exige uma nova concepção de identidade nacional, de Estado nacional e de lealdade nacional. Parâmetros do século XIX, que tentam nortear as relações entre os Estados nacionais no século XXI, estão totalmente superados. Se não compreendermos isso, continuaremos a exportar brasileiros para serem cidadãos de segunda classe no hemisfério norte e continuaremos a tratar imigrantes hispano-americanos, e mesmo nossos irmãos de estados mais pobres, como não-cidadãos.