Para que servem os políticos?
Correio Braziliense


            É provável que eles não existissem nos agrupamentos mais simples, em que os homens viviam apenas para alcançar sua sobrevivência, mas, desde que as sociedades humanas se tornaram mais complexas, os intermediários são registrados pela História. Sacerdotes logo se apresentaram como mediadores necessários entre os homens e a divindade (e/ou os fenômenos inexplicáveis da natureza), assessores tratavam de fazer o meio de campo entre os poderosos e o povão, comerciantes compravam alimentos dos produtores e os revendiam para a população. Juízes se estabeleceram para mediar conflitos, guardas para fazer com que determinações superiores fossem cumpridas, mestres para ministrar conhecimento acumulado e passar valores dos mais velhos para os mais jovens. Intermediar é, pois, uma atividade que tem uma longa história. E nada de errado com isso.
            Intermediários, além de frequentemente indispensáveis, têm agido como elemento civilizador. A civilização grega espalhou-se juntamente com o comércio do vinho e do azeite, acondicionados em vasos, muitos deles exibidos hoje como objetos valiosos nos melhores museus do mundo. Fenícios – que viviam no que é hoje o Líbano – espalharam o alfabeto pelo Mediterrâneo. Sem a presença dos comerciantes judeus a população da Europa medieval não teria acesso ao tráfico de cultura que acompanhava sedas e especiarias trazidas do Oriente. Isto para não falar que as grandes descobertas foram decorrência muito mais da vontade de lucrar de navegadores e governantes do que da tão propalada sede de perscrutar o desconhecido. O mercantilismo propiciou o encontro de culturas, o que é indiscutível, mesmo que seja muito questionável e até reprovável a forma pela qual a civilização cristã da Europa lidou com a cultura de tribos e reinos americanos e africanos.
            No século 19 prosperou, em alguns setores, a ingênua concepção de que a atividade comercial era parasitária. Socialistas ingênuos (e anarquistas mais ingênuos ainda) chegaram a pregar o fim do comércio. Para alguns deles a ausência de intermediários tornaria os produtos mais baratos. Curioso é verificar que estas correntes supostamente laicas de pensamento social talvez não soubessem, mas estavam reproduzindo uma ideologia tremendamente retrógrada, tipicamente medieval e necessariamente religiosa, segundo a qual haveria apenas três categorias socialmente legítimas, entre as quais o comerciante não se incluía: os camponeses, cuja função era produzir, os cavaleiros, cuja tarefa era lutar e, evidentemente, os sacerdotes, cujo papel era orar. Dentro desta visão o comerciante seria marginal, logo maldito. Essa concepção funcionou para brecar o desenvolvimento das forças produtivas e congelar a estrutura de poder feudal. Foi nessa barca furada que muitos ingênuos do século 19 entraram.
            Como se vê, a existência de intermediários é indispensável em uma sociedade mais complexa, como a nossa. Representantes do povo são necessários, pois é praticamente impossível deliberar em uma ágora (praça pública), como faziam os gregos, com a presença de todos os cidadãos, sobre todos os temas relevantes (mesmo a democracia ateniense estava longe de ser perfeita, pois marginalizava estrangeiros e mulheres). Policiais para manter a ordem, aquela estabelecida pela maioria dos cidadãos, são essenciais. Professores para transmitir cultura acumulada e valores, são básicos, principalmente em sociedades em que o diálogo entre gerações não é lá estas coisas. Juízes e procuradores são aqueles que têm por tarefa zelar para que as leis, votadas pelos representantes do povo, sejam aplicadas de modo adequado. São todos, pois, intermediários entre a vontade das pessoas, coletivamente concebidas, e a Constituição, as leis e os usos de uma sociedade.
            Quando, então, a intermediação não funciona? Quando um dos intermediários erra, seja por omissão, seja pela aplicação desvirtuada daquilo para o que ele recebeu mandato. Um policial que para o motorista de um automóvel com licença vencida e em más condições de uso e decide liberá-lo erra. Um professor despreparado para a docência erra. Um juiz que aplica justiça de classe (a favor de qualquer lado), beneficiando o criminoso de colarinho branco, ou o empregado relapso erra. Um jornalista tendencioso (ele é o intermediário entre o fato e o leitor) erra. Que dizer então de um político que age em causa própria, deixando de representar aquele que o elegeu?


Download do arquivo