Que língua usamos no Brasil?
Correio Braziliense


 
O Novo Acordo Ortográfico, implantado em nosso país, deu a muitos a falsa impressão de que Portugal e Brasil estão se reaproximando no uso da língua compartilhada por eles. Nada mais errado. Uma coisa é a ortografia, bem ou mal estabelecida por decreto, outra o uso da língua. E como já disse aqui, língua, ao contrário de atum, não se congela. Em Portugal, por exemplo, ainda se aplica o pronome vós, enquanto no Brasil nem escreventes de cartórios ou advogados parnasianos fazem uso da segunda pessoa do plural. Mesmo o tu, usado em alguns estados brasileiros, aparece quase sempre como terceira pessoa, no lugar de você, e não na segunda pessoa do singular. Usos tão distintos da língua exigem gramáticas diferentes. Resta, é claro, a posição elitista de desqualificar o uso que os brasileiros fazem de sua própria língua, opondo uma suposta gramática normativa à essa gramática de uso, mas isso soa tão falso quanto um vós à solta, não achais, senhores?
Faltava, contudo, uma obra que sistematizasse a gramática desse português brasileiro (que caminha para ser, mas ainda não é, uma língua brasileira, independente). O desafio era como compatibilizar a confecção de uma gramática com uma postura não normativa. Para isso seria necessário um amplo conhecimento do uso da língua, em diferentes regiões do Brasil, e de uma enorme capacidade de sistematização, algo ao alcance de poucos. Há que saudar, pois, a chegada da Nova gramática do português brasileiro, de Ataliba Castilho. Ela não é “mais uma gramática”, por vários e bons motivos: em vez de ser uma gramática da língua portuguesa, busca ser a gramática do português falado por quase duas centenas de milhões de indivíduos no Brasil; é a obra da vida de um dos mais importantes linguistas que o país já produziu, ex-professor da Unesp, da USP e da Unicamp, pesquisador do CNPq, consultor do Museu da Língua Portuguesa, líder de importantes equipes que vêm mapeando a fala brasileira.   
O livro procura dotar os brasileiros de um certificado a mais à sua identidade. Não se trata de um certificado qualquer, pois é na língua que se manifestam os traços mais profundos do que somos, de como pensamos o mundo, de como nos dirigimos ao outro. Faltava clarificar a gramática do português brasileiro, para dar status científico a essa percepção. É o que se faz nesse livro.
 Mas, atenção: não é uma gramática-lista, cheia de classificações, que começam pela Fonética, atravessam a Morfologia e perdem o fôlego na Sintaxe. Nessas gramáticas, não se vê uma língua, vê-se uma gramática. Aqui, o autor focalizou o que se esconde por trás das classificações, identificando os processos criativos do português brasileiro que conduziram aos produtos listados. Ultrapassa-se a barreira da descrição, encaminhando o olhar para o que ocorre também na linguagem mental, pré-verbal. Ultrapassa-se a fronteira da sentença, pois o trabalho tem início no texto.
 Quando falamos ou quando escrevemos, uma intensa atividade é desencadeada em nossas mentes, com rapidez enorme, acionando-se quatro sistemas linguísticos ao mesmo tempo: o léxico, a semântica, o discurso e a gramática. Esses sistemas são articulados pelos princípios sociocognitivos que regem a conversação, a mais básica das atividades linguísticas. Essa gramática foi concebida nos moldes da teoria multissistêmica, de cunho funcionalista-cognitivista, desenvolvida por seu autor.
  As gramáticas resultam habitualmente do trabalho individual, fundamentando-se na língua literária. Também aqui, essa gramática tomou outro rumo. Os escritores não trabalham para nos abastecer de regras gramaticais. Eles exploram ao máximo as potencialidades da língua, segundo um projeto estético próprio. As regularidades que as gramáticas identificam devem fundamentar-se no uso comum da língua, quando conversamos, quando lemos jornais, como cidadãos de uma democracia. Isso não exclui a fruição das obras literárias, mas é uma completa inversão de propósitos tomá-las como fundamento para a descrição de uma língua. Por outro lado, as línguas são tão complexas, que é impossível trabalhar solitariamente em sua análise. Levando isso em conta, os linguistas brasileiros conceberam, a partir da década de 1970, grandes projetos coletivos, nos quais o autor se envolveu.
   Uma gramática diferente, sem dúvida. Mas tão mais verdadeira...
 
 


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