Ensinar a ler
Correio Braziliense


A leitura de um texto exige muito mais que o simples conhecimento linguístico compartilhado pelos interlocutores”, ensinam Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias no livro Ler e compreender, os sentidos do texto. De fato, quanto mais rico e pleno de referências for o universo cultural do leitor, mais rica poderá ser sua leitura. Por outro lado cabe ao autor conhecer o leitor, o interlocutor, se de fato deseja estabelecer um diálogo frutífero e não um monólogo estéril.
Saber da necessidade desse diálogo é fundamental para a atividade editorial, em qualquer nível, a partir de qualquer mídia. Um editor de jornal orienta os repórteres, editorialistas e colaboradores no sentido de adequar sua escrita ao universo cultural e às condições de leitura dos assinantes. Os suplementos e cadernos, destinados a diferentes segmentos de leitores são uma prova disto. Não é por acaso que os jornais dominicais são mais massudos, plenos de artigos mais longos; também é nesse dia que os suplementos culturais circulam: o povo dedica mais tempo e mais atenção à leitura dos diários.
Da mesma forma, é perceptível a mudança, para mais “fácil”, na linguagem das revistas semanais de grande circulação. Reféns exatamente de sua grande circulação viram-se obrigadas a veicular temas antes inimagináveis, como autoajuda. Embora ainda tragam matérias que permitem leitura em vários planos, muitas vezes a facilitação da linguagem substitui a precisão informativa. Isto quando a linguagem coerente não é simplesmente substiuida por infográficos, mapinhas e ilustrações legendadas com frases óbvias. “Constuir sentido” sobre bases tão pobres como essas, é um exercício tão elementar que dificilmente o leitor mereceria o título de grande estrategista.
Ao imitar, ou tentar copiar uma tela da internet jornais, revistas e até livros podem, em vez de facilitar ou tornar accessível, simplesmente banalizar o conhecimento. O interlocutor não se sente estimulado para recorrer ao seu universo cultural, por mais limitado que ele seja, recorrendo apenas ao repertório mais imediato. Por outro lado vários professores universitários relatam a preocupação utilitarista e imediatista da maioria dos alunos que abrem mão (sem lamentar, diga-se de passagem) de se apropriar do patrimônio cultural da humanidade. “Sua leitura dos textos fica muito empobrecida”, me conta um historiador preocupado com o ensino, “eles não têm idéia de que Sócrates não é apenas o nome do irmão do Raí, ou que Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, não é um tratado de botânica”.  
O texto escrito em geral, mas o livro em particular tem uma função civilizatória fundamental, a de colocar ao alcance dos cidadãos o conhecimento acumulado por séculos, de modo organizado. Isto implica em estudar, conhecer fatos, de um lado e, mais uma vez estudar, para conhecer teorias. Ter um repertório de informações e saber como lidar com as informações para que elas não pareçam um samba do crioulo doido.
Não há escrita sem coerência, não há escrita sem coesão, no dizer de Koch. Para escrever adequadamente é necessário que o autor tenha acesso ao conhecimento organizado, tenha entendido o que buscou, tenha incorporado o saber e tenha condições de trabalhá-lo com outros saberes de que é detentor para, só então, poder criar. (Quem não faz toda esta trajetória corre o risco, hoje comum, de escrever não só trabalhos de curso, mas até dissertações e teses sem ter dado conta do já pesquisado e publicado. Ou seja, de chover no molhado). O ato de criação intelectual não é um exercício de descobrimentos da pólvora (mesmo por que ela já foi descoberta), mas de trabalho a partir de uma parcela do saber já acumulado.
Meu argumento é que uma cultura de “achados” não leva a nada, pois não se baseia no que já existia, mas simplesmente supõe uma originalidade dificilmente existente. E mais, despreza o conhecimento teórico, a organização do material coletado. Vira conhecimento inútil, de almanaque, não uma forma de desvendar o mundo.
É assustador verificar que jovens se satisfaçam em participar passivamente do mundo em que vivem, abrindo mão de entendê-lo, dar-lhe conteúdo e, eventualmente, participar de sua mudança. É preocupante constatar que uma sociedade como a brasileira, vivendo um momento único (já que a população ativa não precisa mais alimentar número excessivo de crianças, como acontecia há algumas décadas, nem cuidar de enorme massa de idosos, como acontecerá em algumas décadas) não vem se preocupando, seriamente, com ensinar a ler.


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