O presidente e o cigarro
Correio Braziliense


               Boris casou-se com uma irmã mais velha da minha mãe, daí ter-se tornado Tio Boris. Meus pais sempre lembravam que ele era apenas um “tio de respeito”, não um tio autêntico. Ao contrário dos parentes legítimos obcecados pelo trabalho e espartanos nos hábitos, ele era chegado a comidas diferentes, a uma cervejinha, a um jogo de pôquer. E mais: fumava muito. Cigarro sem filtro, é claro. E sempre fiel à marca, Continental, então preferência nacional, como dizia a propaganda.
Bigode tipo mexicano caindo pelos lados da boca, pernas finas, ventre pronunciado, fala lenta, sotaque italiano do Bom Retiro “de baixo”, meu tio tinha, no bairro em que morava, uma oficina mecânica especializada em conserto de máquinas de confecção de malhas. Quando uma quebrava em plena estação, os malharistas (judeus, gregos, árabes, os coreanos ainda não tinham chegado) pagavam qualquer coisa desde que pudessem contar com a máquina de volta. A oficina cresceu, Tio Boris arranjou um sócio, contratou meia dúzia de funcionários, alugou um espaço em plena Rua da Graça, no meio das malharias.
 Os negócios iam bem e, embora a graxa não saísse totalmente de suas unhas, eu identificava cada vez menos o cheiro do óleo solúvel, usado na usinagem das peças metálicas, no corpo do meu tio. Agora, ele já encontrava mais tempo para conquistar clientes no café da esquina, deixando o sócio e os funcionários cuidando do dia-a-dia da oficina. Tio Boris tomava muito café. E fumava muito, cada vez mais.
 Quando os médicos diagnosticaram o câncer no pulmão, não havia mais muito a fazer. Como eles diziam, era abrir e fechar. Avisado pelas primas, fui visitálo. Ele estava reduzido à metade e mal falava. Como nos filmes, pediu para que eu me aproximasse e balbuciou: “Foi o cigarro, Jaime, foi o cigarro. Para mim é tarde, mas você deve parar de fumar”. Ao sair para a rua, me deparei com um garoto de 14 ou 15 anos que me pediu um cigarro. Eu tirei o maço do bolso da camisa, mais de metade dos cigarros estavam lá. Torci maço e cigarro com as duas mãos e detonei tudo, antes de jogar no lixo. O garoto xingou minha mãe, mas não me importei. Tio Boris morreu alguns dias depois. Eu nunca mais fumei.
 João Tortello era o professor de português do velho Estadão, o Colégio Estadual Júlio Prestes de Albuquerque, de Sorocaba. Fala mansa, os erres cuidadosamente pronunciados, e uma atípica despreocupação com a gramática, faziam do Tortello uma figura agradável. Mas ele era bem mais que isso. Exigia que escrevêssemos com vocabulário ampliado e brincava ensinando uma palavra nova por aula. E falava-nos da maravilha que era ler.
 Naquela época, eu lia tudo que me caía nas mãos. Todo o Érico Veríssimo, todo o Jorge Amado,todos os russos disponíveis, agora os franceses, depois os grandes novelistas americanos. Ah, tinha ainda o José Lins do Rego e os contos de Kafka. E os de Edgar Poe. Minha casa não tinha televisão, a internet não existia e cinema apenas uma vez por semana. Restava a leitura. Tortello sempre me deu uma atenção especial. E ficou espantado quando descobriu que eu não gostava de Machado de Assis. “Mas, Pinsky, você ainda não gosta de Machado?”, ele me perguntava a cada santa aula. Do alto da auto-suficiência típica dos 15 anos, eu respondia que não gostava e nunca iria gostar. De fato, a leitura de um dos livros românticos de Machado me dera a impressão de que se tratava de um José de Alencar carioca e eu me recusava a ter contato com o Machado realista.
 Tortello não esmorecia. Corrigia respeitosamente minhas redações, mas insistia para que eu conhecesse algum livro do grande Machado. O primeiro acabou sendo O memorial de Aires, que me deixou fascinado. A fina ironia, a falsa simplicidade da linguagem, os personagens magistralmente pincelados, os acontecimentos se sucedendo com a necessária lógica inesperada me conquistaram. Tenho sempre um Machado por perto, para compensar os textos mal escritos que minha profissão me obriga a ler.
 Tortello nunca fez o elogio da ignorância. Para ele a cultura era um direito de todos. Ciente de sua responsabilidade ele forjou gerações e, quando encontro meus ex-colegas (vários deles em Brasília, por sinal), conversamos sobre o que é ser professor, de fato. Teria sido muito fácil para ele desistir de mim.
Meu Tio Boris, embora próximo da morte, assumiu a responsabilidade que tinha diante de um sobrinho. Teria sido muito fácil para ele dizer que fumava quanto desejasse, na própria sala, como o presidente. Ambos conheciam a importância do exemplo.
 


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