Livro, cerveja e xerox
Correio Braziliense

Em co-autoria com correio Braziliense

           Esta é verdadeira.
         Um amigo paulista avisou o psiquiatra que não poderia comparecer à sessão seguinte, uma vez que tinha uma importante reunião de negócios no Rio de Janeiro. O psiquiatra retorquiu: “Não pode não, não quer.” O paciente insistiu dizendo que a reunião era muito importante mesmo, “imperdível”. “Nada que um homem livre faz depende dos outros. É sempre uma questão de escolha. Não me cabe entrar no mérito da questão, mas você há de estar de acordo comigo que escolheu ir à reunião e não vir à sessão.”
         Sem pagar nada, só ouvindo a história, me lembrei de alunos meus de uma grande universidade paulista. Quase todos tinham carro, os jeans deles eram de grife (os meus não eram), o chope com o sanduichinho faziam parte de seu ritual de final de noite, mas dinheiro para comprar livros eles não tinham... Questão de escolha, de prioridade. Como quase tudo que fazemos na vida.
         Agora um grupo de pesquisa de uma universidade pública resolveu o problema do custo do livro (não do carro, nem do chope). Concluiu que os editores deveriam continuar publicando livros acadêmicos, mas para evitar impactos econômicos sobre os alunos deveriam parar de cobrar por eles. O argumento é simples: como muitos autores se originam de universidades públicas, nada mais justo do que tornar gratuito o conteúdo. Seria uma forma de a sociedade recuperar o investimento feito.
          Estou convencido. E hoje mesmo vou tentar convencer os dois médicos com que me consulto de que suas consultas deveriam ser gratuitas. Os dois formaram-se com dinheiro público (um fez a USP e outro a Unifesp). Mais graves ainda, ambos são professores dessas universidades e teriam que devolver à sociedade aquilo que receberam de graça. Talvez eu possa também convencer o engenheiro (formado na Poli, USP) de que a reforma que ele fez por aqui não deveria ser cobrada. Nem a mão de obra, nem o material, pois lembraria aos ilustres membros do tal grupo de pesquisa que para a realização de um livro não entram apenas as idéias.
          Pensando bem, não falarei com eles. Farei melhor. Lembrarei o que é editar.
          Uma tese é um produto acadêmico. Parece-me legítimo que esteja disponível para toda a sociedade. Ela pode ser publicada na mídia papel. Nesse caso teremos uma tese publicada na mídia papel impresso, mas não necessariamente um livro. Livro é fruto do encontro entre pelo menos dois saberes. O do autor, especialista no assunto e o do editor, que deve conhecer as necessidades da sociedade e, no caso de uma sociedade capitalista como a nossa,  do mercado. É por esta razão que nem sempre uma boa tese dá um bom livro. Tese se faz para uma banca, em primeiro lugar e quando é boa, para especialistas. Um livro deve alcançar uma faixa mais ampla de público, alguns milhares pelo menos, de modo a tornar viável a publicação. (Não estamos falando de obras financiadas pelo próprio autor). Nada impede que uma boa tese possa ser, na sua forma original, disponibilizada digitalmente no site da universidade em que foi defendida, e, uma vez adequada, vendida como livro por uma editora.
          Neste caso houve um esforço extra por parte do autor e um investimento em saber e dinheiro por parte do editor. O original foi cuidadosamente analisado, sugestões de alteração foram feitas, o autor empregou mais alguns meses na reformulação da obra, revisores entraram em ação, até que se chegasse ao produto final. Claro que também aí se trata de um produto social, mas de caráter bastante distinto da dissertação ou da tese. Uma editora, não importa se mantida com dinheiro público ou fruto de investimento privado, se empenhou e investiu para a saída do livro, um autor foi muito além do trabalho que deve à academia. Todos os envolvidos no processo merecem ser remunerados e, se não o forem, ficam desestimulados para a produção e circulação deste tipo de saber.
         Aqui não adianta ser populista com o trabalho e o dinheiro dos outros. Preservar o direito do autor e do editor é uma obrigação de uma sociedade que acha que livro é de fato importante e a circulação do saber deva ser estimulada.            
         É sabido que há alunos que lutam com imensa dificuldade. Mas desestimular autores e editores não resolverá o seu problema. Para isso é que deveriam servir as bibliotecas, com acervos atualizados, a compra coletiva e até a digital, por capítulos, quando for o caso.
          Agora, colocar tudo na internet, grátis e à disposição de todos só resultaria no uso mais indiscriminado ainda do (no caso) famigerado Ctrl C seguido do Ctrl V. E sei que me entendem.


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