O português da gente
Correio Braziliense


              No tempo em que se lia poesia todos liam Fernando Pessoa. Hoje ele se sustenta por meio de meia dúzia de leitores fieis, vinhetas de shows de Maria Betânia e citações esparsas. É uma grande poeta, para muitos o maior da língua portuguesa desde Camões. Tem a vantagem, nada desprezível, de ser quatro em um, já que criou os famosos heterônimos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Fernando Pessoa “ele mesmo”. Algumas pessoas, mesmo no Brasil, fazem questão de ler seus versos com, vamos lá, sotaque português, aquela pronúncia que renuncia às vogais e dá uma musicalidade diferente do que o falar “descansadinho” que adotamos em quase todo o Brasil. A famosa passagem da Tabacaria, um dos mais conhecidos poemas de Álvaro de Campos é, segundo muitos, para ser lido mais ou menos como Q’ sei eu dq srei, eu q não sei o q sou...  É quase outra língua.
            A propósito de sotaque contam que o famoso filólogo português Fidelino de Figueiredo estava proferindo uma palestra, ou dando um pequeno curso numa universidade brasileira, quando foi interrompido por um aluno que lhe pediu para falar mais lentamente. “É difícil acompanhar tudo o que o senhor fala, professor, inda mais com esse sotaque”. O mestre lusitano respondeu de pronto. “Alto lá! A língua é nossa. O sotaque é de vocês”. 
            Será a língua mesmo deles ? Ou, por conta da vinda da família real portuguesa para cá, há duzentos anos e pelo fato de sermos mais, muitos mais, teríamos adquirido direitos de proprietários, apenas permitindo, generosamente, que os antigos donos continuem usando e dando o nome à nossa língua?
            As respostas para indagações deste tipo podem começar a ser respondidas numa visita ao Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Para início de conversa trata-se de um museu extraordinário, união feliz do saber produzido na universidade com técnicas de interatividade que envolvem os visitantes. Não é por acaso que o museu vive lotado, principalmente de estudantes que aprendem jogando. A garotada se senta diante das telinhas para ouvir explicações de sumidades como Ataliba Castilho, Arion D’Aligna e outros. Mapas, gráficos, simulações mostram aos alunos que o português demorou para se tornar o principal veículo de comunicação no Brasil e que, por conta da presença de numerosas línguas indígenas e africanas, desde logo constituiu-se a base do que hoje pode ser chamado de português do Brasil. Nem melhor, nem pior, mas diferente do português de Portugal.
            O processo de distanciamento só fez se aprofundar com o tempo. Na magnífica síntese sobre o assunto que escreveu sobre a formação do português brasileiro o lingüista da Unicamp (hoje professor em Estocolmo, na Suécia) Rodolfo Ilari chama seu livro de O português da gente, em contraposição ao português “deles”. Não há, contudo, em sua obra, nenhum traço de chauvinismo primário, ou de ingenuidade intelectual.  Pelo contrário, Ilari mostra que formações históricas diferentes sofrem influências lingüísticas diferentes que podem acenar com mudanças maiores e mesmo um divórcio num futuro mais ou menos distante. Num outro texto que escreveu (Transformações na língua in O Brasil no Contexto) conta ele que “quando a classe média brasileira resolveu acoplar à boa e velha geladeira vertical dos anos 1950 um outro eletrodoméstico destinado a resfriar alimentos por tempos mais longos e em temperaturas mais baixas, a palavra utilizada foi frízer, decalcada do inglês freezer. Por aqui ninguém pensou em usar o substantivo congelador, que seria uma tradução correta de freezer, mas que já tinha sido usada para indicar um dos compartimentos da geladeira tradicional. O caso de frízer, aliás, mostra bem a facilidade com que o português do Brasil vem aceitando empréstimos: nossos irmãos portugueses, muito menos receptivos do que nós em matéria de estrangeirismos, imediatamente representaram o novo eletrodoméstico como uma variante do velho baú no qual as moças de outrora guardavam seu enxoval, e assim o denominaram de arca frigorífica; portanto, que ninguém se surpreenda se ouvir algum português dizer que tem um atum guardado na arca...”
            Ao contrário de atuns, línguas não se congelam. Nem por leis, nem por acordos ortográficos desejados por supostos sábios (distantes do mundo real)  e muito menos por políticos mal informados. Línguas, padrões estéticos e até valores morais têm historicidade. Pensar no português do Brasil como uma extensão do de Portugal e insistir em acordos ortográficos que não foram aprovados sequer por eles é um contra-senso. Um anacronismo


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