Quem vai tocar para nós agora?
Correio Braziliense


A notícia pode passar despercebida, mas não deve. As vendas de CDs caíram 19% nos Estados Unidos, em 2007. A EMI, uma das grandes gravadoras do planeta vai demitir 2000 funcionários. Artistas, há poucos anos responsáveis por vendagens fenomenais, hoje recebem valores irrisórios de direitos autorais. No Brasil, cantores antes responsáveis pela colocação de centenas de milhares de álbuns, agora ficam felizes se alcançam números dez ou vinte vezes mais modestos.
         A música clássica, então, que chegou a representar 20% dos discos vendidos no mundo, não vende mais quase nada. A Tower Records, em Nova York, onde os aficionados do mundo todo se reuniam para comprar  “aquele” concerto, com “aquela” orquestra, “naquela gravação histórica que acabava de ser remasterizada”, simplesmente fechou suas portas. Famosas lojas de vendas pelo correio, situadas no interior da Inglaterra, mudaram de ramo.
         A indústria de CDs  de música parece estar no fim. Dizem os entendidos que vem sendo comida pelas bordas por dois fenômenos, ambos ligados ao mundo digital: o primeiro tem a ver com a pirataria, pura e simples. Aqui mesmo em Brasília, em qualquer canto, encontram-se vendedores de CDs piratas, copiados com mais ou menos cuidados, e vendidos por um valor infinitamente menor do que o original. Segundo um taxista de São Paulo seu ponto vem sendo visitado, semanalmente, por um vendedor cuja tabela de preços para CDs é de 3 por 5 reais (o DVD é um pouquinho mais caro, 3 por 10 reais). Ele tem um vasto catálogo para pronta entrega e aceita encomendas. A indústria fonográfica não tem como concorrer com este tipo de comércio, mesmo porque ela é que arca com as despesas de produção.
         Mas as gravadoras vêm sendo acuada, por outro lado, pelo fenômeno Ipod/MP3. Ir à Internet, encontrar a música que se quer, e copiá-la é um exercício relativamente fácil e até prazeroso para quem gosta de brincar com o computador. Claro que se pode comprar música na Amazon, ou na própria loja virtual  da Apple,  mas o número de pessoas que baixam e fazem cópias clandestinas é muito maior. Sempre se pode alegar que as gravadoras são multinacionais poderosas, braços de polvos capitalistas exploradores, etc. e merecem quebrar. Longe de mim defendê-las. Minha preocupação é outra:   sem remuneração par o seu investimento, será que gravadoras vão querer continuar produzindo CDs? E sem remuneração pelo seu trabalho, será que músicos e cantores continuarão a gravar? E se ninguém mais gravar, que Cds os piratas irão copiar e vender?     E quem vai tocar para nós?
         Claro, pode-se alegar que músicos deveriam buscar outras fontes de renda, como shows, para sobreviver. Isso pode ser verdadeiro para alguns, mas não para outros. Se João Gilberto, supostamente mais importante para a história da musica brasileira do que, por exemplo, Ivete Sangalo (para ficar na Bahia) dependesse dos raros shows que perpetra, mesmo com toda sua simpatia e carisma acabaria morrendo de fome. E, na área da música clássica, ocorre-me a bela orquestra de Saint Martin on the Fields, de Londres, composta por um notável grupo de professores que não gostam de viajar, razão pela qual gravam (ou gravavam) muito. Devem fazer o que? Tocar violino no metrô em troca de algumas moedas?
         Mas gravar agora é fácil, diria alguém, dá para fazer isso na garagem de casa. Sem dúvida, registrar ruídos produzidos sem harmonização, ornados por letras paupérrimas e óbvias pode ser uma opção, se tivermos claro que abandonamos qualquer pretensão de qualidade, qualquer que seja o critério estabelecido. O que interessa a qualidade, diria o pragmático, se o sucesso é efêmero, dura pouco mesmo, e amanhã aparecerão outros sucessos, enquanto os de hoje serão totalmente esquecidos.
         Ora, esse argumento clarifica bem a mudança de concepção do que possa ser pensado como arte: a morte de uma orquestra inglesa de qualidade, o fim de uma elaboração lenta e bem feita de música não contam diante da nova realidade do mercado. E o mercado quer sempre algo novo, mesmo que seja ruim, já que é descartável. Num planeta apressado, em que as pessoas consomem tudo mal e rapidamente, sejam alimentos, produtos eletrônicos (com obsolescência programada), ou relações pessoais (namoros de um dia, casamentos de três meses “por que enjoei”) as palavras arte e qualidade quase  perderam o sentido. A crise da produção da música de qualidade é, ao que parece, um aspecto de uma outra muito mais ampla.
         Os vilões da história , além dos piratas e seus clientes, não são, portanto,  a informática e a digitalização. Trata-se apenas de técnicas que se mostraram adequadas para um mundo em profunda crise de valores.
         Mas isto já é outro assunto que fica para o mês que vem...


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