São Paulo, meu amor
Publicado no livro Cidadania e educação


São Paulo tem sorte por fazer aniversário em janeiro. Neste mês as ruas ficam mais vazias, os cinemas se tornam viáveis até em finais de semana, o humor das pessoas melhora. Livre das madames que passam longas temporadas nas areias poluídas do Guarujá, dos boyzinhos que vão surfar em Maresias, dos novos-ricos que vão procurar alguma nevasca no Hemisfério Norte, o trânsito da cidade se torna quase suportável; e as pessoas, acostumadas a considerar o tempo de congestionamento no cálculo de seus trajetos, acabam chegando adiantadas aos compromissos. Com o humor de janeiro, tanto os que ficam na cidade por opção quanto aqueles que não tiveram alternativa acabam descobrindo nela virtudes que não percebem nos outros meses do ano.
O fato é que São Paulo nos surpreende. Nesta época do ano, ela ostenta um verde agressivo, brilhante, fruto da união de calor e chuva. As velhas tipuanas, imensas e cheias de parasitas, chegam a impedir a passagem do sol, ao juntarem suas copas às da de suas irmãs do outro lado da rua. Sibipirunas e paus-ferro acolhem bandos de periquitos gritões, bem-te-vis indiscretos e tico-ticos madrugadores. Quaresmeiras apressadas revelam seus primeiros botões. Quem caminha atento pelas ruas arborizadas da cidade descobre um inesperado e imenso pau-brasil no Alto de Pinheiros, cafeeiros em vários bairros e uma incrível variedade tonal entre os sabiás (talvez um especialista consiga até identificar a região de origem dos sabiás pelo canto). Constata também que amoreiras, mangueiras, jabuticabeiras e outras árvores frutíferas, plantadas em ruas e quintais, atraem cada vez mais pássaros, tornando a nossa cidade mais agradável. Há que ter paciência também, porque caminhar por nossas calçadas é se arriscar a tropeçar no seus buracos mil, é estar sujeito a trombar com um automóvel, placidamente estacionado na calçada, é enfrentar guaritas e cercas vivas agressivas, é ser expulso para o leito carroçável da rua e enfrentar os automóveis, ainda (até quando?) os reis da rua?
Assim é São Paulo, hospitaleira e hostil, até numa simples caminhada.
Às vezes pergunto por que tanta gente mora por aqui. Afinal, esta é uma cidade violenta e perigosa, em que a parcela dos que têm se esconde atrás das grades das casas e dos prédios, das trancas e dos vigias, dos vidros fechados dos carros e das guaritas instaladas nas ruas, nas casas e nos corações. Esta é uma cidade apressada, em que as pessoas demoram horas para chegar de um lado a outro e, por falta de tempo ou medo, se trancam cada vez mais dentro de sua solitária auto-suficiência. Esta é uma cidade em que a competição com todos os demais habitantes do planeta (resultado cruel da globalização) já começou, e, em vez de amigo e concidadão, o próximo é visto como adversário, inimigo mesmo, competidor que ou se mata ou nos mata. Esta é uma cidade em que poucos utilizam o equipamento cultural que a diferencia de todas as demais cidades brasileiras e a iguala a poucas do mundo inteiro. Afinal, por que tanta gente mora aqui? Se a resposta for emprego, até esse, pelo jeito, também está acabando, como confessa um dos diretores da Fiesp em artigo publicado recentemente no Estadão.
Então por quê?
Porque esta é uma cidade que tem uma força incomparável. Porque esta é uma cidade que olha para trás, não por nostalgia, mas para encontrar sustentação para novas ações. Porque esta é uma cidade pulsante, aberta para novas experiências, embora reticente a modismos tão a gosto de cidades menos sérias. De resto, São Paulo é séria, sim, mas não é sisuda. Quem a acusa de inflexível não percebe que ela apenas se recusa a ser leviana.
Cidade de rosto definido, mesmo sem ter marcos ou símbolos evidentes, ela é a soma de muitas caras. Qual mulher recatada, não exibe logo os seus encantos, que revela apenas àqueles com que tem mais intimidade. Deglute migrantes, incorpora imigrantes, seduz todos por não ser natureza enfeitada, mas espaço construído pelas mãos de cada um de nós.
São Paulo merece ser bem tratada.