Dona Cida tem brio
Correio Braziliense


Dona Cida me liga de Alagoas. Ela tem uma pequena oficina onde fabrica bichos de madeira, particularmente leões, que vende a turistas. Trabalha duro, ajudada pelos filhos, ela que ficou viúva há uns seis anos e que, para sustentar a família, resolveu tentar a profissão do marido, o Soço, grande artista popular morto precocemente. Dona Cida me conta que o leão que comprei dela já estava embarcando, mas que ela estava muito chateada.
 “Professor, ando com muita vergonha. Parece que os nossos quando chegam lá em cima só dão vexame.“ Cida se refere agora ao presidente do Senado, ela que já ficara bastante aborrecida com Collor. Tento conforta-la explicando que, por aqui, também temos políticos de conduta duvidosa e que, além de tudo, não lhe cabe identificar-se com a oligarquia local, antiga ou ascendente, ela que tinha as mãos calejadas de passar a goiva e o formão no tronco de jaqueira para lhe tirar o excesso e revelar os bichos que a árvore escondia. Não adianta. Dona Cida, cheia de brio e sentimento regional, está envergonhada por possíveis falcatruas com as quais, seguramente, nada tinha a ver.
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O professor confessa estar desanimado. Segundo ele, o vestibular é uma piada. Contam que se alguém, desavisado, passar em frente ao prédio da tal escola superior em que trabalha e pedir qualquer informação, mesmo que seja a localização de uma rua, estará automaticamente matriculado. “Os jovens entram sem saber escrever, é uma tristeza. Outro dia o diretor me chamou e exigiu que eu pegasse leve, se não quisesse ser despedido, só porque eu reclamava dos alunos, que ninguém lia nada. A maioria termina a faculdade sem ler sequer um único livro inteiro”, escandalizava-se.
 De fato, a educação formal é um problema terrível: depois de oito anos, dá o diploma de ensino fundamental a analfabetos funcionais, incapazes de ler uma única frase sem soletrála, lentamente, e em voz alta. Com mais três, completando o antigo colegial, o jovem já está habilitado a não escrever nada, incapaz que é de articular frases e pensamentos. Agora tudo isso é coroado com outros quatro anos de suposto curso superior sem que se faça a leitura de um único livro. Ora, nunca aconteceu, em nenhum país, grande ou pequeno, capitalista ou comunista, revolução que não contasse com uma rede de ensino universal, pública e de qualidade. E a nossa não é assim.
 Mas, também, para que se esforçar na escola se pode ser manequim/modelo/atriz de TV, sendo mulher, ou jogador de futebol, sendo homem. E se não der certo nada disso, sempre se pode tentar a carreira política. Esta, além de dar bom dinheiro, parece que é mais atraente para o sexo oposto do que a de ator...
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Ao estimular a produção de automóveis que são vomitados incessantemente nas pobres artérias viárias, já muito esclerosadas, o governo e a sociedade estão praticando a forma mais estúpida de suicídio. A valorização do transporte individual, tanto como necessidade, quanto (e principalmente) pelo valor simbólico que adquiriu; o estímulo à plantação da cana-de-açúcar, praga antiga que agora ameaça esterilizar e desertificar imensas porções de terra; o crédito fácil que transforma todo mundo em escravo de prestações, inclusive ao custo da diminuição do consumo de alimentos de qualidade; a ausência de uma política sustentável de oferta de transporte coletivo de boa qualidade (nossos metrôs são mixurucas, comparado aos de metrópoles equivalentes do exterior, os ônibus raros e de baixa qualidade, os aviões não têm horário e são muito apertados); tudo isso é uma loucura que transforma os cidadãos das grandes cidades em reféns confinados aos espaços privados dos shoppings, em vez do espaço público libertador das ruas.
 Ruas que, quando cheias, nos irritam, e, quando vazias, nos atemorizam. Mas que fazer, se só dona Cida tem brio?


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