Para que servem os símbolos nacionais?
Correio Braziliense


É bastante comum entre os governos autoritários, de diferentes tipos, a instrumentalização dos símbolos nacionais como forma de identificar o Estado (que é duradouro) com o regime (que é transitório), atribuindo aos ditadores de plantão o papel de corporificar tudo: governo, território e nação. Assim tem sido em sistemas como o nazista, com Hitler se apresentando como manifestação mais perfeita do arianismo, utilizando o hino alemão como pano de fundo para as atrocidades que perpetrou e a bandeira como símbolo material do felizmente fracassado “reich de mil anos”.
 O comunismo soviético não escapou de destino semelhante. Logo após a revolução russa de 1917, o velho hino nacional czarista foi aposentado e substituído pela Internacional socialista, antinacionalista por excelência. Stalin, que substituiu Lênin no poder, mandou fazer novo hino, apresentando a então União Soviética como o farol dos povos e o próprio secretário do Partido Comunista (Stalin) como aquele que segurava o farol. Após a morte do sanguinário georgiano e a revelação de seus crimes, houve mudança na letra no hino.
 Hinos, bandeiras, datas cívicas têm por função ajudar a estabelecer uma relação de identidade entre os cidadãos e o país em que moram e isso acontecia no Brasil nos anos 50 do século passado. Os da minha geração e até mais jovens lembram-se de, quando estudantes, ter cantado o Hino nacional em certas datas durante o hasteamento da bandeira. Nós, do glorioso Colégio Estadual de Sorocaba (o “Estadão” para os íntimos e os desafetos), desfilávamos todo dia 7 de setembro sob o ritmo de nossa fanfarra e os aplausos da população que lotava as calçadas das ruas centrais da cidade. E sentíamos muito orgulho disso.
 O governo militar, instituído pela força das armas em 1964, tentou apropriar-se dos símbolos nacionais para enaltecer sua maneira de ver o mundo, governar, fazer política e lidar com os que não concordavam com suas idéias. O nacionalismo dos militares, principalmente nos anos 70, convidava os discordantes a se mudarem de país, com a famosa frase (nada original, por sinal) “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Ao contrário do que afirma Milton Nascimento em sua canção “qualquer maneira de amor vale a pena”, eles eram os donos da verdade, do patriotismo, da nação e quem discordasse teria mais era que dar o fora.
 Ocorre que muita gente não aceitava a forma de eles amarem o país e também não achava razoável a idéia de sair do Brasil. Entretanto, de uma forma ou de outra, os militares acabaram tendo sucesso em um ponto: a maior parte dos símbolos nacionais passou a ser identificada como sendo símbolos do governo militar. De 20 anos para cá se iniciou uma reação contra a utilização desses símbolos, por parecerem a muitos uma espécie de referência aos governantes pouco amados. Isso ocorreu de uma maneira muito especial nas escolas. A letra de nosso hino (que, por sinal, mereceria boa revisão, não é?) foi esquecida, as datas nacionais abandonadas, a não ser por aqueles que se programam para “emendar” feriados e ir para a praia. A bandeira, então, só é lembrada com fervor (até excessivo) a cada quatro anos, por ocasião das Copas do Mundo.
 Ao rejeitar a forma de apropriação de nossos símbolos comuns, queremos jogar fora um passado que negamos. O perigo é jogar fora o bebê junto com a água suja do banho. Quando a Federação Paulista de Futebol determinou que o Hino nacional fosse cantado antes dos jogos realizados sob sua responsabilidade, muita gente ridicularizou a medida. Não sei por que palmeirenses e corintianos não podem, antes de cada um torcer pelo seu clube, mostrar que possuem um elo comum que se chama identidade nacional. Quem sabe isso até ajude a conter um pouco a violência nos estádios.
 As datas cívicas, por seu lado, podem e devem ser comemoradas nas escolas. Repensadas, estudadas, debatidas, mas comemoradas. A professora Circe Bitencourt – após um trabalho de dois anos, feito com a colaboração de dezenas dos mais relevantes historiadores do país – acaba de escrever um livro, em vias de publicação, o Dicionário de datas da História do Brasil. Sem ranço nacionalista, mas sem vergonha de serem brasileiros, os autores colocam, lado a lado, datas tradicionais com outras que adquiriram maior importância nos últimos anos e analisam seus significados, segundo as pesquisas mais recentes. Iniciativas como essas podem representar a vontade que temos de retomar símbolos de nossa identidade.


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