Cidadania e cotidiano
Correio Braziliense


      Esvaziar o conteúdo de um conceito é fácil: basta utilizá-lo de forma muito genérica, privando-o de sua especificidade. Isso é válido tanto para adjetivos usados no dia-a-dia quanto para situar realidades históricas bem determinadas. De algum tempo para cá, as pessoas não ficam alegres, porém eufóricas; não gostam, mas adoram. Em vez de não gostar, odeiam. Minha filha, por exemplo, não apenas não come berinjela, mas “não suporta, detesta, odeia” o pobre legume tão rico em proteínas. Recentemente, nos EUA, expressou sua ojeriza ao agradável substituto da carne com um sonoro “I hate” e foi olhada com muita estranheza pelos convivas que começaram a se perguntar sobre que mal a pobre berinjela poderia ter feito à minha filha. Já a senhora do apartamento vizinho murmurava estar “eufórica” com o crescimento de sua samambaia de metro. Não alegre, nem satisfeita, mas radicalmente eufórica...
     Conceituada historicamente como “mudança de estrutura em ritmo acelerado”, a revolução foi virando qualquer coisa: aqui no Brasil mesmo, com nossa proverbial falta de modéstia, tivemos muitas, culminando por chamar o movimento ou golpe de 1964 de revolução (e às vezes até com maiúscula). Saias dez centímetros acima dos joelhos viraram revolução nos costumes; a volta dos pontas disfarçados de laterais (esses técnicos de imaginação...) nos foi apresentada como uma revolução no futebol.; computador na escola virou revolução na educação e assim por diante.
      A banalização atinge até palavras novas como genocídio, criada após a Segunda Guerra Mundial para designar o assassinato premeditado, organizado e sistemático de quase metade dos judeus existentes no mundo, a destruição da cultura judaica  na Europa (que era anterior a qualquer cultura nacional americana e tinha criado duas línguas, o ladino e o iídishe) e o fim de vilas e cidades em que os escritores Sholem Aleichem e Bashevis Singer, assim como o pintor Marc Chagal, foram buscar sua inspiração. Se há razões para os alemães se envergonharem do genocídio, não há nenhuma para os judeus se orgulharem dele. O que não se pode, porém, é confundi-lo com massacres e perseguições de dimensões diversas como os perpetrados por americanos no Vietnã, russos no Afeganistão, ingleses na Irlanda e assim por diante. Genocídio, é evidente, foi o que nós, brancos, fizemos com as nações indígenas em toda a América ou que os turcos fizeram com os armênios no começo do século.
      Pode-se, por outro lado, esvaziar um conceito por restringir-lhe, excessivamente, o significado, não lhe dando a dimensão e amplitude que tem. É, sem dúvida, o caso de cidadania. Tenho a impressão de que cidadania, para alguns, teria a ver apenas com colocar a mão direita sobre o lado esquerdo do peito enquanto nosso hino nacional é executado, ou torcer inutilmente para que algum corredor brasileiro repita os feitos de Ayrton Senna. Ora, cidadania enfaixa uma série de direitos, deveres e atitudes relativas ao cidadão, aquele indivíduo que estabeleceu um contrato com seus iguais para a utilização de serviços em troca de pagamentos (taxas e impostos) e de sua participação, ativa ou passiva, na administração comum. Por essa definição (mesmo apressada e meramente funcional), vê-se que cidadania pressupõe, sim, o pagamento de impostos, mas a fiscalização de sua utilização; o direito às condições básicas de existência (comida, roupa, moradia, educação e atendimento de saúde) acompanhada da obrigação de zelar pelo bem comum. Operacionalmente, cidadania pode ser qualquer atitude cotidiana que implique a manifestação de uma consciência de pertinência e de responsabilidade coletiva. Nesse sentido, exercer a cidadania é tanto votar como não emporcalhar a cidade, respeitar o pedestre nas faixas de trânsito (motorista pode ser cidadão?) e controlar a emissão de ruídos.
      Diante de infrações que prejudiquem o conjunto da sociedade, costumamos adotar uma atitude dúbia: reclamamos em altos brandos quando somos diretamente atingidos (vejam-se as brigas no trânsito), mas nos omitimos quando o assunto não tem diretamente a ver conosco (um edifício em construção resolveu ocupar metade da calçada já estreita e um vizinho, meu amigo, garante que nem notou). Encanta-me o número de motoristas que escrevem aos jornais reclamando contra supostas indústrias de multas, mas choca-me constatar as infrações constantes feitas no trânsito, talvez pelos próprios reclamantes, que acham normal estacionar indevidamente impedindo o fluxo de toda uma avenida, aguardar abertura de faróis em cima das faixas, entrar em sinal vermelho, ameaçar pedestres, etc. etc.. Exigir direitos é parte da cidadania, mas respeitar os contratos é a sua contrapartida. Talvez por não fazermos a nossa parte ou não termos a consciência de pertencer a um coletivo é que somos tão condescendentes com irregularidades que acabam prejudicando a todos. E o fato de convivermos com uma realidade que mantém a maioria da população sem os direitos básicos de cidadania nos impede de construirmos a  nação cidadã que ostentamos desejar.