Democracia e fanatismo
Correio Braziliense


Gosto de futebol, sempre gostei. De fato, sei apreciar, em jogadores de qualquer equipe, a sutil noção de espaço e sua correlação com a velocidade, a utilização de diferentes partes do corpo para a marcação dos gols (além dos óbvios, como os pés e a cabeça, já vi gols de coxa, de joelho, de barriga, de mão), a elasticidade aliada a forças colocadas a serviço da criatividade em partidas decisivas.
            Confesso-me, contudo, mais do que apreciador do esporte, um torcedor. Convicto. Desses que sofrem quando o time não vai bem, reclamam do juiz e pedem a cabeça do técnico. Torcedor convicto, sim, fanático não. Fanáticos são eles: eu sou apenas um torcedor convicto.
            Não, não se preocupe o leitor, este historiador não enlouqueceu. Está apenas brincando para mostrar que é muito fácil atribuir aos outros atitudes anti-sociais, difícil é reconhecê-las em si mesmo. Tendemos a não assumir nossos comportamentos não racionais, adocicando-os com adjetivos que nos fazem compatibilizá-los com nossa auto-imagem de seres civilizados, modernos, não radicais. Para os outros não temos a mesma generosidade. Por essa razão é que consideramos os outros torcedores fanáticos e nos vemos apenas como torcedores ferrenhos, fiéis, ou seja lá o que for.
            Isso significa que, como não dizia Einstein (quem dizia eram os pós-modernistas, de triste memória), “tudo é relativo” e que fanatismo é apenas uma questão de ótica? Evidentemente não. Fanatismo é uma abordagem do objeto a partir da revelação, não da razão, em síntese. Fanatismo pressupõe uma crença profunda, tão profunda que não chega a ser submetida à crítica.
            Verdades reveladas por uma divindade são, por definição, indiscutíveis. Por serem indiscutíveis, permanecem numa esfera de conhecimento ao qual o simples mortal, ser racional, não pode chegar. Ao se dizer, comumente, que religião não se discute. Diz-se exatamente o que a frase parece dizer, ou seja, a religião exige pessoas que tenham fé, não necessariamente pessoas que pesquisem, analisem e debatam, para só então concluir.
            Embora haja patologias individuais, o fanatismo é um fenômeno social, muitas vezes manipulado, outras desenvolvendo-se como que por geração espontânea. Sob a ótica dos cristãos, os cruzados que saíram da França e de outros países do Ocidente Medieval com a finalidade de “libertar Jerusalém, encontrar o Santo Graal e acabar com os infiéis” travavam uma guerra santa. Para os muçulmanos que dominavam Jerusalém naquela época tratava-se de defender a cidade dos infiéis. “Morte aos infiéis”, por sinal, era o grito que se podia ouvir de ambos os lados do campo de batalha.
            Atribuir aos cruzados apenas interesses comerciais, embora esses estivessem presentes principalmente no caso da IV Cruzada, que nem sequer se preocupou em chegar perto da Terra Santa, é simplificar a história. O ambiente de espiritualidade que pairava no ar, a profunda religiosidade da população (mesmo que manipulada) era um fato. Massas fanatizadas? Provavelmente sob nossa ótica atual, poderíamos dizer algo assim para denominar gente que abandonava tudo para cumprir aquilo que considerava um dever de fé.
            Mais recentemente temos muitos exemplos de fanatismo. Os jovens alemães, envenenados desde tenra idade por doses maciças de propaganda racista, acreditavam fielmente que o mais cretino dos arianos (fosse o que fosse ser ariano) era superior, a exemplo, o grande cientista Einstein ou o fantástico violinista Heifetz, ambos judeus.
            Por mais idiota que uma crença dessas possa nos parecer, o fanatismo permite realizá-la. Os pilotos japoneses que, em nome do divino imperador, jogavam-se junto com seus aviões contra navios inimigos, demonstravam claramente seu fanatismo. Isso pode se dizer também dos homens-bombas contemporâneos, sem dúvida alguma.
            Que dizer, então, de uma potência mundial, cujos líderes, fazendo uma leitura um pouco liberal demais do discurso dos fundadores da nação, se percebem como tendo o destino manifesto de criar a Verdadeira Democracia para si, e a obrigação de fazer com que o mundo todo, por bem ou por mísseis, experimente dela? Abandonada a hipótese simplista de ser apenas uma guerra pelo petróleo, que procuração divina receberam os americanos para endireitar, pela força, aquilo que alguns milênios de vida civilizada ainda não conseguiram construir? Será que a cidadania e democracia, direitos individuais, políticos e sociais podem ser enfiados goela abaixo? E será que esse método “de ensino” não desmoraliza o professor?