Por uma escola de cidadãos
Publicado em Cadernos de Educação Básica Série institucional 9, MEC/FNUAP (Ministério da Educação e Cultura e Fundo de População das Nações Unidas), 1993

Em co-autoria com Regina Pahim

           A escola brasileira se depara, neste final de século, com uma série de desafios que, se forem devidamente enfrentados, podem colaborar decisivamente para romper a barreira do subdesenvolvimento e transformar o país que temos no país que queremos. Se é de uma ingenuidade tocante imaginar uma escola todo-poderosa como fator fundamental de transformações sociais, é de um derrotismo irreal considerar a educação formal apenas caixa de ressonância acrítica da sociedade.
Otimizar as verbas da educação; definir uma política educacional coerente e de longo prazo e mantê-la durante diferentes governos; adequar o ensino à era da informática; manter os professores atualizados; integrar o saber universal ao universo regional sem descaracterizar as especificidades; manter aceso o interesse do aluno na escola, quando saberes mais estimulantes entram em sua sala pela televisão; estes e muitos outros são problemas que cabe ao educador consciente considerar. Os problemas são tamanhos que algumas questões são freqüentemente relegadas a um plano secundário, como se fossem periféricas ou superficiais. É o caso da cidadania, que só há muito pouco tempo tem merecido alguma atenção por parte das autoridades responsáveis pelo ensino, especialmente o elementar.
Afinal, qual o objetivo da escola, senão formar cidadãos? Todos sabemos que a escola enquadra, adecua, integra, desestimula atitudes antisociais, ajuda a transformar o educando num ser social. Ao passar valores específicos de uma região ou de um país, passa também comportamentos e permite ao aluno acesso ao patrimônio cultural da humanidade. E os direitos e obrigações da cidadania são parte integrante desse patrimônio.
A cidadania não é, contudo, uma concepção abstrata, mas uma prática cotidiana. Ser cidadão não é simplesmente conhecer, mas sim viver. Não há possibilidade de ser cidadão num regime totalitário, como a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini ou uma nação latino-americana submetida a governos militares. Isto não significa, contudo, que a democratização formal transforme, automaticamente, todos os habitantes do país em cidadãos. Costuma-se dizer que a cidadania, como a liberdade, não pode ser outorgada, mas sim conquistada. Se isto é verdadeiro, não é menos verdadeiro que cabe a nós, educadores, um papel fundamental no sentido de ampliar o debate sobre a questão da cidadania e os limites impostos à sua prática.
Nossa tarefa
Portanto essa tarefa da escola é gigantesca na medida em que as barreiras à prática da cidadania são inúmeras e podem ser detectadas em vários níveis da vida social. Não há inclusive possibilidade de que a escola sozinha venha a desempenhá-la. O nosso objetivo é tão somente iniciar a discussão desse tema neste texto.
Uma boa maneira de fazê-lo, seria meditarmos um pouco sobre a dificuldade que encontramos para exercer plenamente a nossa cidadania, seja na esfera civil, social, política, enfim, sobre as barreiras que impedem a sua prática. Podemos dizer que muitas das dificuldades têm a ver com nossa própria história, com a maneira pela qual a nação brasileira surgiu, e como ela se articula com o Estado. De fato, em nosso país o Estado precedeu a nação, ao contrário do que ocorreu em outros países. Em 1822, estabelece-se como instituição jurídica o Estado brasileiro sem que houvesse ainda uma nação brasileira. Noutras palavras, cria-se uma instituição jurídica sem a existência da correspondente base social.
Imposto sobre o povo e não criado por ele, o Estado brasileiro não o representava. Esta ausência de representatividade pode ser percebida até hoje na forma como nos referimos ao nosso governo. Enquanto cidadãos europeus ou norte-americanos referem-se a atitudes de seus governos na primeira pessoa do plural (nós invadimos, nós erramos, etc.), nós falamos do nosso governo na terceira pessoa do plural (eles invadiram, eles erraram, etc.).
Por conta deste divórcio entre governo e sociedade, “eles” não nos respeitam e “nós” não lhes damos legitimidade. Não nos sentimos responsáveis pelos atos do governo, portanto não nos consideramos com obrigações diante das leis. Burlar a lei, sonegar impostos, atravessar sinais vermelhos, jogar lixo nas ruas, depredar escolas, arrancar páginas de livros de bibliotecas públicas, são atos que creditamos, freqüentemente, a nossa esperteza e rebeldia, nunca como lesivos à sociedade de cidadãos da qual nós mesmos fazemos parte. A democracia brasileira só se consolidará quando todos nós nos percebermos cidadãos, com direitos e deveres e não como um bando desarrumado e irresponsável de indivíduos.
Como se vê, o problema da cidadania tem várias facetas. Devemos, porém, dar uma atenção especial a uma questão que está presente nas relações cotidianas de todos nós e que deve ser cuidadosamente tratada na escola, onde se manifesta com mais freqüência do que gostaríamos de confessar. Além disso, a escola é um local privilegiado não só para discuti-la mas para iniciar um trabalho de atenuação da sua força. Estamos falando da questão do preconceito e da discriminação, em suas mais variadas formas.
Existe preconceito?
No passado gostávamos de dizer que no Brasil não existia o preconceito, éramos uma ilha de tolerância, o brasileiro era cordial por natureza. Importantes autores chegaram a afirmar que até nossa escravidão foi mais amena, como se ser escravo pudesse ter algo de ameno...
Hoje, não só não temos mais esta ilusão como percebemos que o monstro da intolerância pode estar mais perto do que imaginávamos... Identificá-lo, desmistificá-lo, enfrentá-lo com determinação, definir estratégias para combatê-lo: estas são as metas que temos pela frente.
Raramente admitimos que temos preconceitos ou que discriminamos alguém. Preconceito, nunca. Temos opiniões bem definidas sobre as coisas. Preconceito é outro que(m) tem... Mas se prestarmos atenção certamente nos lembraremos de certas afirmações que já fizemos ou costumamos fazer. Falamos sobre “as mulheres”, a partir de experiências pontuais; conhecemos “os políticos” após acompanhar a carreira de dois ou três; sabemos tudo sobre “os militares”, porque o síndico do nosso prédio é um sargento aposentado. Mas discorremos de maneira especial sobre raças e nacionalidades e, por extensão, sobre atributos inerentes a pessoas nascidas em determinados países. O mecanismo funciona mais ou menos assim: estabelecemos uma expectativa de comportamento coletivo (nacional, regional, racial), a partir de umas poucas impressões sobre esses grupos e seus componentes, ou mesmo sem conhecermos pessoalmente nenhum membro do grupo sobre o qual pontificamos. Enfim, uma noção que formamos a partir de um exemplo ou de uma informação, é transplantada para toda uma categoria.
Afinal todos sabemos (sabemos?) que os franceses não tomam banho; os mexicanos são preguiçosos; os judeus, argentários; os árabes, desonestos, e por aí afora. Sabemos também que os cariocas são folgados; os nordestinos, miseráveis, etc. Sabemos ainda que o negro não tem o mesmo potencial que o branco, a não ser em algumas atividades bem definidas como o esporte, a música, a dança e algumas outras que exigem mais do corpo e menos da inteligência. Sabemos que os mexicanos são preguiçosos, porque eles aparecem sempre dormindo embaixo de seus enormes chapelões enquanto os diligentes americanos cuidam do gado e matam bandidos nos faroestes. Para comprovar que os italianos são ruidosos achamos o bastante freqüentar uma cantina no Bixiga. Falamos sobre a inferioridade do negro a partir da observação de sua condição sócio-econômica. E achamos que as praias do Rio de Janeiro cheias durante os dias de semana são prova de caráter folgado do cidadão carioca. Quando nos deparamos com uma exceção admitimos que alguém possa ser limpo apresar de francês; trabalhador, apesar de mexicano; discreto, apesar de ser italiano; honesto, apesar de árabe; desprendido do dinheiro, apesar de judeu, e por aí afora. Mas admitimos com relutância e em caráter totalmente excepcional. Raramente nos damos ao trabalho de analisar as nossas afirmações mais a fundo. Não nos preocupamos em estudar, em nos informar sobre o papel que a escravidão teve na formação histórica do negro brasileiro. Pouco atentamos para a realidade social do povo mexicano e de como ele aparece estereotipado no cinema hollywoodiano. Ao invés disso, a nossa tendência é reproduzir, de forma acrítica, esses preconceitos que nos são passados por piadinhas, por tradição familiar, pela religião, pela necessidade de compensar nossa real inferioridade individual por uma pretensa superioridade coletiva que assumimos ao carimbar o “outro” com a marca de qualquer inferioridade.
Nós e o “outro”
Temos pesos, medidas e até um vocabulário diferente para nos referirmos ao “nosso” e ao do “outro”, numa atitude que, mais do que autocondescedência não passa de preconceito puro. Por exemplo, a nossa é religião, a do outro é seita; nós temos fervor religioso, ele são fanáticos; nós acreditamos na lei de Deus (o nosso é sempre em maiúscula), eles são fundamentalistas; nós cometemos excessos compreensíveis, eles são um caso perdido; jogamos muito melhor, o adversário tem é sorte; e, finalmente, não temos preconceito, apenas opinião formada sobre as coisas.
Ou deveríamos ser como aqueles que para afirmar qualquer coisa acham necessário estudar, observar atentamente, ponderar a origem da informação, as intenções de quem informa? Não só isso, mas adotar uma atitude receptiva a novos dados, mesmo que contrariem o nosso conhecimento anterior? Observar, estudar e agir, respeitando as diferenças, é o que se espera de cidadãos que acreditam na democracia e, de fato, lutam por um mundo mais justo. De nada adianta praticar a nossa indignação moral diante da televisão, protestando contra limpezas raciais e discriminações pelo mundo afora, se não ficaremos atentos ao preconceito nosso de cada dia. É lógico que é importante protestar diante de discriminações alheias, mas não basta. Temos que estar atentos à maneira como nos expressamos a respeito dos povos, dos grupos sociais, pois podemos, ainda que involuntariamente, estar contribuindo para sedimentar preconceitos e discriminações.
A discriminação e o preconceito lavram um tento quando falamos de uma suposta inferioridade da mulher com relação ao homem, do velho com relação ao jovem, do índio com relação ao branco. Se a mulher tem menos força que o homem, tem mais resistência e vive mais, e, do ponto de vista intelectual não há nenhuma diferença entre eles. Se o jovem tem mais vigor e a pele mais lisa, perde em experiência e em tolerância e mesmo o mito da criatividade juvenil pode ser questionado por homens que fizeram descobertas ou criaram grandes obras já na velhice, como Goethe, Leonardo da Vinci e mesmo Alberto Sabin. Já os índios podem nos dar enormes lições de vida, nós que nos julgamos os civilizados e vivemos em sociedades onde marginalizamos uma parte da população enquanto a outra teme a violência dos deserdados.
Agimos prencoceituosamente contra os portadores de deficiência ao não cuidarmos de nossas calçadas (impedindo assim a passagem dos deficientes visuais), não termos transportes adequados para deficientes físicos e assim por diante. De retos, cultivamos no Brasil um histórico preconceito social contra os pobres. As cidades são feitas para os automóveis que raramente respeitam faróis para pedestres. Serviços públicos, pagos por todos, são considerados favor, seja na área da justiça, da saúde ou mesmo na educação. E não falta alguém que ainda diga que “brasileiro” não gosta de trabalhar. Ora, pois...
Portanto, antes de afirmar que uma categoria social é assim, devemos ponderar se é realmente assim. Se uma característica, um comportamento qualquer aparece com certa freqüência em pessoas pertencentes a uma determinada categoria social, devemos ter o cuidado de não generalizar esse comportamento para o grupo como um todo, e, sobretudo, indagar se isso realmente corre e por que ocorre. Quando, por exemplo, vemos na televisão uma maior incidência de delinqüentes negros, temos a tendência de transpor aquela condição para o segmento negro como um todo, quase que de uma forma inconsciente. Devemos estar atentos a essa maneira de proceder, uma vez que se há negros delinqüentes, há também brancos delinqüentes e delinqüência não é uma característica do negro. Por outro lado, imagens como essas nos deveriam fazer meditar sobre por que isso corre.
Cuidado com as generalizações
Um outro fato para o qual devemos estar atentos é que quando essas generalizações negativas atingem uma categoria social que de algum modo é discriminada, então, o prejuízo é maior, pois não só reforçam o “clima negativo” que a envolve, o que por si só já e um grande mal, mas dificultam o processo de crescimento das pessoas que a ela pertencem na medida em que prejudicam a sua auto-confiança, requisito importante para que, inclusive, ela lute contra esse clima negativo.
Obviamente, nem todas as pessoas pertencentes às categorias discriminadas reagem da mesma maneira perante essas observações. Algumas são mais sensíveis e sofrem mais. Outras parecem não se importar, embora não se saiba o quanto ficam magoadas e não demonstram. De qualquer modo, isso não justifica de forma alguma, esse tipo de procedimento. Agora, você já parou para pensar no prejuízo que os preconceitos podem causar para uma criança? Se eles afetam pessoas adultas, já amadurecidas, o que dizer de uma criança que está em processo de formação da sua personalidade, de desenvolvimento de sua identidade, inclusive identidade de grupo e que, portanto, necessita de modelos para poder se espelhar. Como fica a auto-estima, o sentimento de pertencimento de grupo dessa criança?
Uma outra conseqüência mito séria é que em geral essas imagens, passam a guiar o nosso comportamento quando interagirmos com a pessoa em função das suas s categorias. Ou seja, não nos relacionados com a pessoa em função das suas características individuais, mas em função das características que lhe atribuir, sem maiores reflexões. Enfim, criamos ou aceitamos sem maiores críticas pré conceitos e passamos a agir em função deles.
É verdade que em certo grau de antecipação é necessário para nossa vida em sociedade, para que a todo o momento, não estejamos precisando criar comportamentos e esperar comportamentos diferentes dos demais membros da sociedade. Assim, se entrarmos num ônibus, sabemos que o cobrador espera que lhe paguemos a passagem. Deste modo, o nosso relacionamento com o cobrador será em função dessa expectativa. Mas isso é muito diferente das generalizações de estamos aqui falando.
Como se observa, existe o preconceito, quando a nossa postura em relação a um grupo é resultado de uma expectativa que construímos ou que nos foi transmitida pelos nossos antepassados a seu respeito. Expectativa essa muitas vezes fruto de injunções históricas, políticas, ou mesmo de imagens que circulam na sociedade. Como conseqüência, o processo de interação que estabelecemos com os seus membros é quase sempre permeado por essa expectativa. Ou seja, no momento em que passamos a nos relacionar com pessoas do grupo temos a tendência em julgá-las em função desse pertencimento e não do que elas são individualmente. Por um outro lado, é essa atitude preconceituosa que muitas vezes nos leva a atribuir ao grupo como um todo, erros, os comportamentos negativos de seus membros.
O preconceito é, portanto, fruto de procedimentos levianos, uma vez que se baseia em generalizações, em paixões políticas e não num conhecimento sério e conseqüente.
Preconceitos Positivos
É importante lembrar que os preconceitos, mesmo quando considerados positivos, podem ser prejudiciais, pois todo rótulo é uma camisa de força. E toda camisa de força, ainda que com conotação positiva, é negativa, na medida em que de um certo modo obriga os indivíduos a serem ou a se portarem de uma determinada maneira, mesmo que eles não queiram, ou não se adaptem àquele rótulo. É o caso de se exigir que um negro seja bom de samba; um japonês, especialista em produtos eletrônicos; um alemão, sistemático e assim por diante. Além disso, todos os preconceitos, mesmo os considerados positivos, têm historicidade, quer dizer, alteram-se em momentos diferentes da história. Desconsiderar a história pode nos levar a ver de forma preconceituosa muitas pessoas que nos cercam.
Uma outra conseqüência mais grave ainda é quando, em função dessas generalizações, dessas expectativas, passamos a tratar essas categorias ou pessoas dessas categorias de forma diferente, enfim, passamos a discriminá-las. Por exemplo, não contratar uma pessoa que tem igual ou até melhor qualificação que outras que estão pleiteando emprego numa firma, por ela ser negra, mulher ou imigrante.
Mas o que de mais importante devemos ter em mente é que as generalizações, os preconceitos, as discriminações, são perigosos, prejudicam as suas vítimas do ponto de vista psicológico, uma vez que lhes bloqueiam a criatividade e, conseqüentemente, as possibilidades de crescimento individual e social, elas podem também se extremamente maléficas na medida em que tornam as vítimas mais vulneráveis principalmente quando entram em jogo interesses divergentes, problemas sociais. Nesses casos, pode-se instalar uma crença generalizada, de que tais categorias são prejudiciais para a sociedade, são responsáveis por aquela situação de crise. São inúmeros os exemplos na história que mostram como em um momento de crise, em situações em que entra o jogo de poder, aqueles que são vítimas de preconceitos, que são considerados diferentes em função de características que lhe são atribuídas devido a sua cor, “raça” ou religião, passam a ser discriminados, muitas vezes instalando-se políticas oficiais de discriminação, de tratamento diferente e, em casos extremos, de eliminação. É a essas políticas e ações sistemáticas que damos o nome de racismo, uma vez que quase sempre atingem aqueles que são considerados de outra “raça”. Dizemos, por exemplo, que a minoria branca que estava no poder na África do Sul praticava uma política racista na medida em que queria os negros separados da população branca.
Preconceito e racismo
Como se observa, as diferenças entre preconceitos, discriminação e racismo são tênues na medida em que contêm os mesmos componentes: leviandade, intolerância, dificuldade de aceitar o diferente. De fato, preconceito, discriminação, racismo na realidade estão interligados. Freqüentemente, atitudes preconceituosas predispõem os indivíduos a agirem de maneira discriminatória e a serem receptivos a manifestações de caráter racista.
É nesse sentido que uma sociedade democrática deve combater com todas as forças essas generalizações e imagens preconceituosas que permeiam o nosso cotidiano e que estão constantemente surgindo em função de novos acontecimentos. Uma democracia deve se basear na igualdade de oportunidades e na distribuição igualitária de direitos e deveres entre seus membros. Que igualdade pode existir numa sociedade em que se pratica a discriminação e se pensa de maneira preconceituosa? Deve-se cuidar para que todos os cidadãos adotem uma postura crítica em relação a preconceito, discriminação ou qualquer forma de racismo impedindo que idéias deste teor sedimentem-se no imaginário das pessoas. É um trabalho que deve ser contínuo, e exercido em todas as frentes. Nesse contexto, o sistema educacional é uma instância em que essa ação pode se desenvolver com grande eficácia. De fato, uma escola atenta a essas questões estará contribuindo para que o seu alunado se informe sobre elas, como também para minimizar os seus efeitos seja na sociedade, seja no próprio âmbito da escola.
Falamos, é claro, em sistema educacional no sentido amplo, desde aqueles que pensam sobre educação, até aqueles que a executam propondo currículos, elaborando livros didáticos, indicando-os para adoção, formando professores e atuando no cotidiano da sala de aula. Todas essas instâncias têm uma contribuição importante a dar para tornar o educando um cidadão que respeita o seu semelhante independentemente da sua cor, sexo, origem, religião e cultura. Mas, ainda há um longo caminho a percorrer.
Há necessidade de se envidar esforços para que as contribuições daqueles que refletem sobre esses temas, pesquisadores, participantes de movimentos destinados a defender categorias discriminadas, integrem os estudos sobre educação, evasão e repetência, relação professor/aluno, conteúdos curriculares, livros didáticos, formação de professores.
Embora já seja razoável o acervo de conhecimento produzido sobre essas questões, são poucos os educadores que se mostram sensíveis a essa discussão, poucos cogitam em dimensionar a sua influência no desempenho do alunado. Um exemplo disso é o fato de raramente os diagnósticos sobre educação incluírem a variável “raça”, nas suas considerações...
Há necessidade de que os responsáveis pela elaboração dos currículos se empenhem para que as diferentes disciplinas estimulem, à luz dos seus conhecimentos, discussões sobre conceitos como “raça”, etnia, nação, racismo, preconceito, estereótipo, etnocentrismo, bem como de todos os tipos de vieses e generalizações que levam a deturpações, concepções errôneas e levianas de outras culturas, “raças”, etnias, povos e religiões. Para além dos significados, é importante enfatizar as conseqüências que o uso leviano que todos nós fazermos de muitos desses conceitos no nosso cotidiano, possa ter, tanto para aqueles que são afetados como para aqueles que os utilizam.
Os autores e editores de livros didáticos, por sua vez, precisam estar mais atentos no sentido de evitar que os textos e as ilustrações discriminem categorias sociais seja por omissão, seja por veicularem sobre elas imagens negativas e estereotipadas.
O papel do professor
Outra questão muito importante, quase uma pré-condição para as demais providencias frutifiquem diz respeito à formação do professor. Enquanto o professor não tiver uma formação neste campo do conhecimento que o habilite não só a transmiti-lo ao seu alunado, mas, sobretudo a levá-los a compreender o alcance e a gravidade de tais questões, a amplitude de suas conseqüências, enfim uma formação que o estimule a se tornar um aliado dessa causa, pouca coisa poderá ser feita. Um professor sensível a essas questões certamente estará mais atento a atitudes preconceituosas e a atos discriminatórios, seja no contexto escolar, no material didático, ou mesmo na sociedade mais ampla; mostrará maior disposição em discutir essas questões, reconhecer seus próprios preconceitos e, provavelmente, será mais receptivo às sugestões e tentativas para tornar a escola um local onde realmente as crianças, independentemente de “raça”, cor, religião, origem, se sintam bem e tenham possibilidade de se desenvolver plenamente. A sua postura, a sua atitude, poderá influir na maneira como os seus próprios alunos passarão a ver a questão, daí a necessidade de uma formação sólida, e de uma constante reciclagem do professorado.
No entanto, esse trabalho de desmistificação dos preconceitos, de conhecimento de como se formam, do prejuízo que causam, enfim, esse processo de desconstrução é apenas um primeiro passo. Ele não estará completo se não houver concomitantemente uma ação no sentido de veicular informações sobre a realidade dos grupos discriminados, sobre os condicionantes históricos, sociais e culturais da sua a situação social, sobre as suas realizações, as suas contribuições para a humanidade, enfim, os pontos positivos.Obviamente, no momento que combatemos uma imagem negativa, já estamos de um certo modo apresentando o outro lado da moeda. Mas é importante que esse aspecto positivo seja enfatizado. Essa é uma tarefa da sociedade como um todo e a ser desenvolvida em várias frentes, nos meios de comunicação, na produção literária, na propaganda. Mas é o sistema educacional, em todas as suas instâncias, que tem condições de empreendê-la de modo mais sistemático e contínuo.
 Os responsáveis pela elaboração das diretrizes curriculares, os autores e produtores de livros didáticos certamente contribuiriam muito se tivessem o cuidado de incluir no currículo escolar e nos livros das diferentes disciplinas, conteúdos e informações sobre a história, a cultura dos povos que formam a nação brasileira, sobre a sua contribuição para o país e sobre o contexto social econômico em que ela ocorreu.
Tais conteúdos deveriam também integrar as disciplinas de formação de professores para que, mais tarde, eles tivessem condições de trabalhá-los com seus alunos. Outrossim, seria importante que o futuro professor se inteirasse dos recursos disponíveis para o desenvolvimento desses conteúdos em sala de aula. Os cursos poderiam informá-los ou colocá-los em contato com associações culturais, centros produtores de material impresso e visual sobre o tema bem como com as críticas e sugestões que as minorias sociais vêm fazendo à sociedade e à escola em particular. Enfim, desenvolver no futuro professor uma postura de pesquisa constante de fontes que possam melhorar os seus conhecimentos e dos seus alunos sobre a questão.
Além disso, estes cursos deveriam passar aos futuros professores informações que os estimulassem a perceber a necessidade de trabalhar positivamente a identidade “racial”, “étnica”, “regional”, “religiosa” do alunado, da importância que essa iniciativa tem para a formação da personalidade do aluno, do seu auto-conceito, do seu sentimento de pertencimento ao grupo do qual se origina e, inclusive, para o seu aproveitamento na escola. Uma criança que se sente valorizada na escola, que reconhece nos conteúdos que aí são vinculados pontos de contato com a sua cultura de origem ou de seus antepassados, certamente, sentir- se-á mais motivada, mais predisposta a desenvolver as tarefas que lhes são solicitadas.
Ainda, os autores e editores de livros poderiam contribuir produzindo livros de História de diferentes povos, de episódios em que segmentos comumente não contemplados nos currículos escolares estiveram envolvidos; livros de Literatura em que os componentes de grupos discriminados na nossa sociedade aparecessem como verdadeiros personagens, com toda a riqueza que caracteriza uma personagem. Editar livros de autores oriundos desses grupos também seria interessante na medida em que o conhecimento dos seus pontos de vista, da sua visão de mundo, das suas angústias e expectativas poderia contribuir para reverter imagens preconceituosas que se tem dos mesmos.
A hora da ação
Como se vê, a tarefa é imensa e o professor certamente é uma peça essencial nesse processo. Independentemente da pressão que pode e deve  exercer (afinal não estamos falando dos deveres e nos direitos do cidadão?) cobrando dessas instâncias ações mais condizentes com os ideais de uma sociedade democrática e não discriminatória, independente do seu trabalho de desconstrução dos preconceitos que deve ser contínuo e sem trégua, o professor também pode exercer uma ação de valorização dos alunos que pertencem a grupos que comumente são discriminados na sociedade. Nesse sentido é importante criar um ambiente estimulante e acolhedor, para todas as crianças independentemente da suas diferenças, sejam elas raciais, culturais, religiosas, físicas; incentivar e dar oportunidade a todas de se manifestarem, de se posicionarem; aproveitar todas as ocasiões para evidenciar de modo positivo o grupo de origem dos alunos pertencentes às minorias sociais, seja no relacionamento com os mesmos, no desenvolvimento da matéria, na postura que adota perante acontecimentos em que estiveram envolvidos, seja no próprio ambiente escolar. Nesse sentido, é importante que as pessoas de diferentes origens apareçam nos materiais visuais que enfeitam as salas de aula tanto em cenas do cotidiano, como em cenas que mostrem a sua participação nos acontecimentos históricos e a sua contribuição para o nosso desenvolvimento. Não se pode esquecer que tais providências não vão só beneficiar aqueles que são discriminados, que são vítimas de preconceitos. Todos se beneficiarão na medida em que estarão tomando conhecimento de outras culturas, outras visões de mundo e, sobretudo, estarão aprendendo uma postura de respeito ao seu semelhante, mesmo que ele seja diferente ou considerado como tal.